quinta-feira, 31 de janeiro de 2013



















HENRIQUE OLIVEIRA: multidões cromáticas e invasores urbanos.

Quase no apagar das luzes, consegui ver a exposição de Henrique Oliveira no Centro de Arte Helio Oiticica (acaba nesse final de semana, dia 03). Tenho o visto em Bienais (2008, 2010), Paralela 2006 e nesse OiR – 2012, com trabalhos de grande escala, que atravessam o espaço expositivo, ao mesmo tempo deixam-se atravessar ao abrir suas entranhas. Mas individual é a primeira.
Relutei um pouco porque o último trabalho que vi no Parque de Madureira (Rj) na mostra OiR (nome horrível), não me agradou. Problemas de escala, de posição e de certa passividade em relação à situação do parque. Parecia que a peça tinha pousado naquele parque de diversões, não se diferenciando dele.
No CAHO, com curadoria de Vanda Klabin, além das esculturas, há a surpresa das pinturas, que não conhecia (muito embora tenha o artista tenha começado como pintor nos anos 1990). De fato, já se pressentia essa visada pictórica nas esculturas e instalações pelo tratamento sensível da superfície da madeira. Inclusive, na instalação da Bienal de 2010, havia por certo, uma citação explicita à  “A criação do mundo” de Courbet.
São telas “estranhas”, de intenso e vibrante cromatismo, perfazendo uma verdadeira acumulação pictórica. Difícil definir um padrão estrutural nessas telas. O que vemos são espécies de veios, magmas cromáticos latentes e acomodatícios. Não se trata propriamente de pinceladas, a meu ver, na medida em que estão destituídas de teor expressivo - não expõem uma vontade incontida de expansão ou uma vontade de ordem reguladora. Parecem apenas estar ali, ocupando o espaço possível, se infiltrando por brechas, escoando por frestas, fluindo em intervalos disponíveis, no limite da coalescência. Se há algum procedimento ditando o movimento (que pode ser lento, rápido ou mesmo ríspido), me parece que seja a maleabilidade ou a capacidade infinita de adaptação ao meio.  Outro traço seria a proliferação, daí a elevada densidade cromática. Para usar o jargão dos urbanistas, há alta taxa de ocupação dessa multidão de cores por centímetro quadrado, mas uma ocupação em perpétuo movimento e acomodação. Nesse contínuo proliferar-se, cada tela seria apenas o retrato de um instante que no seguinte, já teria se modificado.
Cores pop, superficiais e exteriorizadas acentuam a sensação de que apesar do dinamismo cromático, não há ação, mas tão somente reação. O gesto cínico e iconoclasta pós-moderno, a ação idealista moderna, a vontade revolucionário iluminista, a virtus humanista, todos e tantos ideais se veem abafados nesse estado de latência e anestesia contemporâneo. Isto perfaz uma espécie de desesperançado decorativismo lúdico, mas lúcido. Para mim o aspecto mais interessante dessas pinturas.
Já das peças escultóricas tinha alguma ideia. São cinco trabalhos, que se poderia dizer que se enquadram na categoria de relevos, devido à sua dependência da parede e ao seu estado entre pintura e escultura. Estranhas protuberâncias afloram da superfície, de aparência orgânica pulsante, como se estivessem vivas, agitadas por uma força primordial. Curiosamente essa urpflanze (planta primordial goetheana), na qual não se distingue arte e natureza, é construída com restos de tapumes recolhidos de canteiros de obras. Portanto, aquilo que é refugo de construção, é a matéria-prima para esses novos seres. Por um lado, as placas de madeira compensada formando volumes envolventes remetem à memória vegetal com sua textura corrugada e impregnada de musgos e fungos. Por outro, o aspecto de colagem precária, de lascas grampeadas que revestem o esqueleto estrutural remetem à lógica da bricolagem construtiva que  vemos nas favelas de nossas metrópoles.
Se a analogia vegetal é preponderante nos relevos que surgem do plano, nas peças que parecem brotar da parede, a impressão é outra. Aparecem como se fossem inflamações expostas, vísceras que explodem da epiderme, provocando uma sensação quase de repulsa. Tamanha estranheza não deixa de suscitar nossa imaginação científica, ficamos mesmo a imaginar criaturas ameaçadoras, embriões monstruosos gestados nesses casulos gigantes, prestes a serem expelidos.
Esses relevos me parecem os mais bem realizados da mostra, por tudo o que tem de insólito e formalmente imaginativo, mas especialmente pelo corte brusco que operam nas nossas balizas  físicas de mentais de estabilidade e segurança. Não por acaso são aquelas que mais incisivamente contestam a ordem do espaço arquitetônico.
Se os tapumes são usados para isolar e ocultar o trabalho sujo e brutal do canteiro, para que a edificação surja incólume, após esse processo poético de transmutação, se convertem em abscessos pulsantes que irrompem para fora da superfície, como se as entranhas da construção estivessem sendo atacadas por inimigos patológicos que eclodem, conspurcando a inteireza e homogeneidade da parede. Tais eclosões orgânicas num elemento mecânico que delimita um espaço funcional atuam como verdadeiras cisões nas nossas ficções de racionalidade.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A necessidade da crítica


Escrita no “calor da hora”, reação imediata diante da obra. Toda crítica é contemporânea, surge do face-a-face com presente do trabalho de arte. Daí o aspecto fundamental: a imediatez e frescor da experiência. Naquele presente, naquele embate visceral entre expressão e compreensão se estabelece um intervalo lúdico, um jogo aberto que envolve um sem número de possibilidades (poéticas, simbólicas, técnicas, políticas, científicas, etc), sem hierarquias marcadas, que por alguma razão começam a formar enlaces precários, conexões instáveis, tramas provisórias, mas que nos mobiliza, agita, vivifica e faz ir a diante, ao novo encontro na expectativa de que tais relações se confirmem para que possamos ter  alguma sensação de compreensão. Como não há garantias prévias, é sempre um renovado encontro o que sucede. Mas é aí que se encontra a graça da crítica.
No entanto, e eis o grande problema, nenhum ato crítico se consolida se não for capaz de ir além da experiência pessoal do sujeito com a obra. Se não seguir adiante, esse momento de contato intenso com a arte, um belo momento sem dúvida, fica limitado a um episódio da “minha vida privada”, do qual não consigo falar sobre, comunica-lo, transmiti-lo a outro e assim compartilhar minha experiência.
A crítica, nesse sentido, é um ato de comunicação de certa experiência, e somente encontra validade na dimensão social da vida. Portanto, não nos deixemos cair nessas fáceis e ingênuas recusas da crítica, acusada de ser mais o resultado de uma frustração, vaidade ou rancor do crítico. Nessa recusa, o que se revela realmente é a obstrução ao debate, ao diálogo, ao reconhecimento de que a arte é um fato cultural público que quanto mais for discutido, mais seu valor se afirma.
O crítico não é uma espécie de juiz, que profere um veredito de autoridade sobre a qualidade da obra. Ele sabe que impor determinada posição ou alinhamento que oriente seu juízo é cercear sua liberdade. Mas se ele compreende que o próprio da obra é manter-se aberta a novos juízos,  não pode ter a arrogância de impor-lhe um juízo definitivo. Um dos maiores, Clement Greemberg, afirmou que a verdadeira liberdade é, inclusive, assentir em ter nossas expectativas contrariadas, e surpreendidos com essa contrariedade, deixa-la fluir livremente. O crítico pode ter suas preferências, é claro, mas não pode querer controlar suas reações.
Em princípio, duas coisas são imprescindíveis à escrita crítica. A primeira é a autenticidade da experiência estética. O crítico é nesse sentido, um especialista na avaliação reflexiva de sua experiência. Quanto mais oportunidades e ocasiões de experimentar a arte, mais riqueza e clareza de material ele invocará no momento do embate crítico. Daí se dizer que um crítico não se constitui sem o contato com a obra, não dá para fazer crítica no conforto de quatro paredes, olhando apenas imagens indiretas provenientes das técnicas de reprodução industrial. A segunda é um elemento mediador entre a experiência da obra e o outro. Um que possa ser comum, que não seria outro que não a linguagem. A escrita crítica, por isso, é um gênero difícil, situado entre o literário e a tradução, entre a sensibilidade e compreensibilidade, na transição entre linguagens distintas. A palavra exata é o seu ideal, mesmo sabendo que ela nunca será suficiente, nunca esgotará completamente a sensação vivida.
Todos sabemos, a linguagem do crítico não é a linguagem da obra, mas da arte se pode falar, e quanto melhor falar e escrever, maior será a chance prolongar o nosso contato com ela.