segunda-feira, 1 de abril de 2013






IOLE DE FREITAS
“Para que servem as paredes do Museu?”

2013

Policarbonato e tubos de aço inox  (10 x 10 x 5m)



Logo à entrada, somos arrastados para um “novo interior”. Planos ondulantes esverdeados descem por cima do vão da porta de acesso tragando nosso corpo para um ambiente de planos e linhas fluidas que desenham livremente o espaço. A sensação é de entusiasmada disponibilidade, que nos leva a habitar o espaço incentivado pelo fluir desinibido dos elementos plásticos. Nada parece deter essas linhas metálicas que parecem surgir e cruzar a sala de todos os lados, brotando chão, atravessando paredes, subindo e descendo, deixando nosso corpo permanentemente mobilizado.  As faixas de policarbonato translúcido afagam a luz que entra pelas altas janelas e inflam como velas ao vento, envolvendo e sensibilizando nossa carne, esta que compõe nosso corpo hoje tão submetido aos diagramas de força que nos moldam e conduzem nesse cotidiano administrado e instrumentalizado. 





A instalação de Iole de Freitas nos oferece esta oportunidade de experimentar o espaço como pura disponibilidade, como inesgotável campo de experiências. E é aí que começa o debate com a arquitetura, expressa na pergunta sobre o que fazer com as paredes do museu.
Uma proposição site specific deste tipo, implica uma leitura crítica do continente arquitetônico. Na Casa Daros essa percepção se revela constituidora do trabalho. Construído em meados do século XIX por um discípulo de Grandjean de Montigny, o casarão tem as características típicas do partido neoclássico: composição por eixos, estrutura pavilhonar, distribuição simétrica e ornatos discretos. A planta neoclássica de base retangular, com corpo central destacado e alas distribuídas ao redor de dois pátios. Não é a primeira vez que a artista confronta a espacialidade neoclássica. Em 2009, expôs na Casa França-Brasil, mas lá o espaço ao contrário era monumental e expansivo, gerando outra possibilidade de ocupação.
A sala da instalação de Iole de Freitas se localiza exatamente no encontro das alas, onde o eixo muda de direção, formando um ângulo de 90°. Por sua posição na extremidade, o acesso dá-se ao longo do corredor como termo final do percurso. Do conjunto de espaços do novo museu, é a única sala quadrada (as demais são de base retangular). Ali, a instalação encontra-se contida aos limites do interior da sala. Não busca caminhar por outros ambientes, como na exposição do CCBB (2005) ou extrapolar paredes e janelas como na mostra do CAHO (2000). A meu ver, essa disposição da obra se deve as características intrínsecas do espaço disponível (muito embora, não se possam desconsiderar igualmente os limites impostos pelo Patrimônio Histórico).
Nesse perfeito cubo de 10 x 10 x 5m , de relações métricas correspondentes e proporções exatas (a altura é exatamente ½ da medida do lado do quadrado), a regularidade é afirmada pela distribuição constante de três vãos por parede (janelas e portas). Sob o domínio da métrica geométrica e da regularidade dominante, na planta neoclássica tudo está no seu lugar geométrico e todos os intervalos são correspondentes (em outra oportunidade, falaremos do projeto de revitalização).  Nesse sistema rigorosamente padronizado, os elementos de arquitetura tem sua condição reforçada por conta da enfática individualização: pisos, tetos e paredes se reafirmam; vãos, molduras e revestimentos geometrizam a construção.








 Nesse antigo orfanato de usos determinantes e divisão espacial rígida, instalou-se uma casa das artes. No entanto, as balizas espaciais de antes continuam vigentes: o quadro estará pendurado na parede, o chão receberá a escultura, do teto sairá a iluminação. De modo similar, o parapeito marca o início da janela, a soleira a entrada, o rodapé a separação entre piso e parede. Tudo reafirma a disposição clássica do corpo como eixo vertical contraposto à linha do horizonte que institui o espaço.
A instalação de Iole de Freitas quebra o horizonte de regularidades clássicas, interpondo-se entre os componentes da arquitetura concebidos dentro de seu pretenso e apaziguado lugar natural. As torções orgânicas e as linhas que brotam de toda a parte distorcem os enquadramentos estabelecidos, contrariando a ortogonalidade dominante e estabelecendo perspectivas inéditas de movimento e espaço. A rigor, a instalação conta, logo na entrada, com dois planos cruzados que descem instaurando uma espécie de teto orgânico que chega quase ao chão. Mais ao centro da sala, um terceiro se enrola em outro tubo, em movimento ascensional contraposto aos dois anteriores. Cinco tubos sinuosos cortam o espaço, dois cruzam toda a extensão, indo de parede a parede e servindo de apoio aos planos maiores da entrada; dois brotam do chão e se conectam à parede, mas um apoia o plano contorcido, outro corre independente. Finalmente, a quinta linha de aço saí da parede e passa por baixo dos planos, toca o tubo que apoia os planos cruzados e morre solta no ar. Cada elemento, apesar de sua identidade de conjunto, apresenta condição espacial singular, daí a sensação de variabilidade das situações e visadas.






A obra, enfim, nos diz que é possível instituir novas possibilidades de uso do espaço, mesmo num local de marcações geométricas tão estabelecidas. O confinamento da instalação se justificaria, a meu ver, pela forte individualidade da sala. Nesse volume autocentrado, impõe-se um desenho/desígnio livre. Inclusive, acredito que a tonalidade esverdeada dos planos de policarbonato se deu para conferir mais peso visual à instalação e assim se contrapor ao peso geométrico da sala. De um lado, as placas de policarbonato aparecem translúcidas, de outro, produzem reflexos distorcidos da luz, em ambos no entanto, o efeito atmosférico é marcante. Reagindo fisicamente à luz direta que entre na sala, a instalação expande o ambiente, distende o espaço de qualquer sensação de confinamento e contenção. E apesar de estar no interior da arquitetura, a obra de Iole de Freitas, por sua escala expansiva, manifesta efetiva dimensão pública.