SOBRE O MAR
A entrada
realmente impressiona. No amplo vão
entre duas edificações, uma poderosa cobertura requalifica o que era mero vazio
em espaço comum. Este o gesto primordial
do projeto: tornar o um e o outro o mesmo.
Antes duas diferenças irreconciliáveis, inimigos históricos de uma batalha
pela arquitetura - modernismo x ecletismo
– agora conformadores de um todo
complexo e inclusivo. Nesse jogo entre diferenças reconciliadas, um elemento se
tornou fundamental: o circuito de circulação.
Chega-se por
entre os edifícios, onde se encontra a bilheteria. Tomam-se os elevadores do prédio
modernista: a visita começa por cima. Ao
chegar ao terraço, somos imediatamente agarrados pela deslumbrante paisagem,
tantas vezes reencenadas pelas imagens turísticas que quase não sabemos se é
real ou um cartão postal. A projeção da cobertura ondulante avança e repousa
sobre o terraço do palácio eclético. No prolongamento do horizonte vemos o
píer, a ponte, a imensa baia da Guanabara. O terraço modernista reitera a ideia da cidade
como obra-de-arte. Ainda sob o impacto
de tal espetáculo, descemos por uma generosa escada em caracol, que lembra a do
Ministério da Educação, chegamos ao pavimento abaixo, cuja claridade e leveza
chamam a atenção. Este espaço funciona como hall de entrada pela sua situação
intermediária entre exterior e interior – nem fechado como no interior dos
espaços expositivos, nem aberto como no terraço, mas permeável e translúcido (ali
inclusive se encontra a maquete do Museu que nos permite entende-lo como um
todo). Catracas de controle nos indicam que estamos na entrada do museu
propriamente dito. Nesse ponto a sensação se inverte. Do aéreo e aberto, somos
arremetidos por um túnel profundo e fechado até chegar aos reservados e
introspectivos espaços de exposição. Estes são como interiores cavernosos,
voltados totalmente para si mesmos, como se casulos a proteger o tesouro da
arte.
Começando pelo
último pavimento, o espectador faz a passagem da paisagem vista para a
representada (“O rio em imagens”), duplicação que pretende demonstrar que
paisagem não é algo que está lá fora, mas é um olhar que a constrói. Depende
muito mais de quem olha do que do que é olhado.
Nos andares inferiores, desfilam duas coleções
com “arte pura” - Coleção Boghici e Fadel - clássicos da história da arte em
miniatura (uma de cunho mais universal - Coleção Boghici – e outra mais local –
Coleção Fadel), com peças de real valor e importância. Finalmente, no piso que
corresponderia ao térreo (nesse ponto já não temos muita certeza de onde
realmente estamos), encontramos a arte, depois de a vermos preservadas em
assépticos cubos brancos, tentando reatar relações com a sociedade, na mostra
“O Abrigo e o terreno: arte e sociedade no Brasil I” (deixaremos para outra
ocasião comentários específicos sobre as exposições e a curadoria).
Mas pondo de
lado essa descrição das sensações no percurso do espaço arquitetônico, tentemos
abordá-lo de uma perspectiva mais dilatada. Afinal, desde sua inauguração, o
Museu de Arte do Rio de Janeiro – MAR ultrapassou a condição de mero fato
arquitetônico para ser tratado como verdadeiro evento público e é justamente
nessa visada ampliada que pretendemos olhar o projeto.
De fato, o Museu
foi tratado como marco inaugural da recuperação da cidade. Ante a frustrada
promessa da Cidade da Música, convertido num anticlímax, o MAR sinaliza o
momento de otimismo e transformação positiva, um ícone dos novos tempos. Pelo
menos é assim que a mídia o tem tratado.
Poço de Serviço - Canteiro de obras na Praça Mauá |
Inevitável a sua
relação com o projeto Porto Maravilha que pretende revitalizar a ampla área do
porto, bem como os bairros vizinhos da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. A Praça
Mauá surge nesse contexto como uma espécie de grande antessala dessa nova
cidade que se anuncia: o grande hall do Porto Maravilha. Justamente por isso a
área ficou reservada para a instalação de marcos culturais: o MAR e o Museu do
Amanhã (no píer). Essa transformação está em curso, a própria praça é um imenso
canteiro de obras, e do alto do terraço vemos a imensa “cratera” escavada que
serve de poço de manobras à obra subterrânea da nova via que atravessará desde
o início do aterro do flamengo até a altura do Armazém 8 na Gamboa. Um ponto
mais à frente, no Largo São Francisco da Prainha, outra “cratera” de operações
faz a região trepidar com as explosões diárias que abrem as entranhas da terra.
Essa via subterrânea será a substituta do elevado da perimetral, cuja demolição
começou em Abril de 2013. Ampliação de vias de superfície e novos túneis para
VLTs e BRTs completam o quadro de projetos e obras de infraestrutura. Além
disso, haverá liberação de novos usos e do gabarito da região, segundo o modelo
das CEPACs - Certificados de Potencial
Adicional das Construções – para financiar as operações urbanas, estabelece
parcerias público-privadas de equacionamento entre estado e mercado. Os
impactos dessas operações de mobilidade, novos usos e verticalização são
concretos e precisam ser seriamente considerados, na medida em que se estima um
aumento da população de 22 mil para 100 mil na próxima década[1].
Palacete Pirncipe D. João e Polícia Cilvil Metropolitana situação original |
Frente a esse
contundente processo de transformação urbana, do qual o MAR é parte integrante,
como se posiciona o projeto? O prédio da antiga Polícia Civil Metropolitana, em
cujo térreo funcionava o Terminal Rodoviário Mariano Procópio[2]
e o Palácio Príncipe D. João, com funções administrativas nasceram voltados
para a Praça Mauá. Apesar de serem representativos de tendências opostas de
arquitetura, não passam de coadjuvantes tardios do combate entre o modernismo e
academicismo. Não haveria por que inibir-se com excessiva reverência ao
existente. O prédio modernista sofreu
uma operação de subtração de paredes e parapeitos, ficando praticamente vazado,
com leve vedação nas fachadas maiores, na verdade lâminas verticais de vidro
esverdeado que ora funciona como painel de fechamento ora como brise. O que
vemos é uma alternância dessa pele translúcida que reveste os andares e as
faixas horizontais brancas que marcam as lajes, tudo isso apoiado sobre
pilotis. Aqui o que domina é a ordem da transparência. O bloco eclético foi
restaurado, conservando sua impostação clássica e seu caráter de bloco
firmemente assentado no solo. Mais, transformou-se numa caixa hermeticamente
fechada, com vãos de portas e janelas vedados, impedindo qualquer relação entre
interior e exterior. Seus quatro pavimentos, tem mesmo esquema espacial: caixa
de serviços e circulação no centro e duas grandes salas de exposição nas
laterais.
Duas atitudes de
projeto se percebem nesse modo de abordagem com patrimônio arquitetônico. No
tipo modernista, a operação teve uma diretriz, poderíamos dizer mais
linguística. A subtração (inclusive do último pavimento para abrigar o terraço)
ocorreu para explicitar os elementos de linguagem que marcam a gramática de nossa
arquitetura moderna. Isto é, o pilotis, a fachada livre com seus brises, o
terraço, a estrutura independente com a marcação clara entre lajes e colunas.
As inclusões podem ser lidas como “citações estilísticas” óbvias das coberturas
ondulantes de Oscar Niemeyer e das cores padrão e a escada circular do MES. No
tipo historicista, a atitude foi preservacionista, prevalecendo o ato da restauração,
especialmente a recuperação dos ornatos da fachada e esquadrias e na
recuperação da cúpula e das coberturas. No interior, a operação foi a de abrir
os espaços livrando-se das paredes existentes.
Dois edifícios
num mesmo. Um, a escola do olhar; outro, o Museu. No conjunto, um centro
cultural: o MAR. A grande cobertura muito mais que uma citação estilística: um
gesto de articulação, de colocar sob um mesmo domínio aquilo que se achava
separado. Daí a razão do percurso de visitação começar pelo terraço, ponto em
que todas as dimensões podem ser vislumbradas.
Esse modo de
articular o novo e o existente com a estrutura de cobertura me fez lembrar do
projeto de Jean Nouvel para a ampliação do Reina Sophia. A extensa e alta
parede do edifício antigo, que antes separava interior do exterior, agora se
converte agora em limite de uma espacialidade urbana, na verdade um amplo pátio
vazado no qual habitam volumes soltos unificados pela grande cobertura.
Contudo, se no
MAR visualmente o gesto formador dessa cobertura-nuvem é contundente, do ponto
de vista das relações espaciais e programáticas, devo confessar que senti certo
incômodo, justamente por esse anunciado movimento de integração e continuidade se
afirmar em certos pontos e se interromper bruscamente em outros.
Por certo, é
intencional desconexão entre exterior e interior no Museu, isso em função dos
interesses museográficos e curatoriais, sem dúvida. Porém, essa obstrução
começa tão logo deixamos a Escola do Olhar para adentramos o túnel, como que
num percurso ritual, tivéssemos que nos preparar, a bem dizer, romper com as
amarras da realidade cotidiana e comezinha, para adentrarmos o templo sagrado
da arte. Nos interiores do Museu a realidade material, histórica e funcional do
antigo edifício foi apagada. Não sentimos aquelas paredes espessas
interrompidas por vãos regulares, não sentimos o peso do teto ou a firmeza do
piso, não percebemos o contraste luminoso entre a parede sombria e a janela em
arco recortada, não conseguimos sentir a memória do uso e da vida anterior do
edifício[3].
Apenas por um instante, ao passar de uma sala para a outra, percebemos o fosso
do elevador de metal contornado pela escadaria de madeira e acima o vão da
cúpula. Se o lugar da arte é estar fora de contexto, qual o valor de tanto
cuidado e esmero na restauração das fachadas com seus inúmeros ornamentos? Não
há como nos relacionar com o antigo, tão somente ele está lá como um cenário
por onde passamos simplesmente.
Chama atenção no
projeto do MAR a reiteração de um modus
operandi: muito foco no objeto arquitetônico em detrimento da situação
urbanística que envolve a edificação. A ênfase na construção do objeto, bem
como a sensibilidade para com a paisagem, se dá em contraposição à dificuldade
em incluir o urbano no processo de projeto.
Menos praça,
mais mirante.
Implantação |
Pavimento térreo |
quinto pavimento |
sexto pavimento - terraço |
Uma das ideias
dominantes foi ampliar a fachada, tornando plano único o que eram formas
separadas. Esta extensibilidade ressaltou a frontalidade do Museu, pois a
intenção era relacioná-lo à praça e á vista que dela se abria. Assim, o eixo de
centralidade que ordenava o Palácio eclético foi deslocado para o vão entre os
dois blocos. O contraste de espacialidades, no entanto, foi mantido e enfatizado:
a pesada solidez intransponível do palácio; a leveza e transparência do prédio
modernista. Essa frontalidade não é apenas da ordem do tratamento das fachadas,
mas mostra-se na ordem das disposições funcionais. A plataforma de cobertura que
abrigava as baias do antigo terminal rodoviário Mariano Procópio, rua interna
situada entre o Mar e o prédio da Polícia Federal, agora serve para os setores
de apoio e serviço, ocupado pelas bilheterias, área técnica, café, loja, museografia,
etc. Quando a rodoviária estava em funcionamento, a plataforma e o pilotis
encontravam-se em situação de continuidade (a cobertura em abóbodas sinalizava
essa conexão, agora é ocupada pela livraria e pelo café), que agora foi
rompida, já que preenchida por uma série de anexos que fecham a passagem. Aquilo que se insinua com o grande vão entre
os dois blocos como acesso livre, e por extensão, o vão livre do pilotis perde
sentido. O contato com as ruas limítrofes se interrompe, a espacialidade que
gira ao redor dos dois blocos é bloqueada, na medida em que tudo se volta para
a praça[4].
O mesmo
raciocínio se observa na conexão suspensa – o expressivo túnel se crava nas
costas das edificações e, no terraço a alocação do restaurante espreme os
espaços, tanto o interior quanto os da parte do terraço, que tem apenas o
panorama da praça e da baía como cenários liberados.
Resumindo: o
funcional, o técnico, os serviços, enfim aquilo que constituiria os espaços
servidores, todos empurrados para o fundo, relegados à condição subsidiária
para privilegiar os espaços servidos. Em si, essa estratégia não tem nada de
equivocado, mas no conjunto resultante repõe uma ordem hierárquica entre a figura
e o fundo, entre o artístico e o funcional, entre o estético e o técnico, entre
beleza e utilidade, dicotomias há muito questionadas e superadas. Parece-me,
para ser franco, uma posição conservadora e elitista, que deposita no artístico
da arquitetura, no caso na forma e na composição (típicos valores acadêmicos) o
suporte para a afirmação de uma imagem de impacto. No domínio do híbrido, do rizomático, do
quiasma, do entre, seja lá o que mais estas palavras da moda da
contemporaneidade queiram dizer, uma coisa é certa: todas desacreditam do mito
da pureza, das distinções claras, das ordenações binárias.
Pilotis no lado da Praça Mauá |
Pilotis - visto da Praça |
Vista da Rua Venezuela - Marquise que originalmente abrigava o terminal de ônibus |
Vista do pilotis para o anexo de apoio |
Para o meu
gosto, justamente a fachada oposta é a que mais atraente, pelo seu aspecto
complexo e contraditório, onde nenhum acordo harmônico foi aparentemente
buscado. Ao contrário, não há como não
perceber a falta de transição no agressivo acoplamento da passarela suspensa,
no desalinhamento entre os blocos, na pobreza de ornamentação da face de fundos
do bloco eclético (sem rusticações, sem molduras de vãos trabalhados, sem
pórticos, cúpulas, balcões), na alternância entre panos cegos e partes vazadas
e no volume opaco do terraço do bloco modernista. Nessa conjunção algo disparatada,
a cobertura ondulante, com seu “beiral” pronunciado se singulariza como mais um
componente desse conjunto de disjunções que conforma esse “todo difícil e
iclusivo” (Robert Venturi).
Vista da fachada noroeste - fundos |
Há, sim! A
grande cobertura. O móvel sinuoso remete,
como vimos, aos inúmeros projetos modernistas que tinham nessa estratégia o
modo de torna-la ativa e participante da espacialidade global do edifício,
evitando assim a sensação de mero fechamento inerte. O plano flutuante em
oposição ao telhado convencional. Um suspende o edifício, outro o empurra para
baixo. Niemeyer sempre tirou partido desse recurso. A graça de seus projetos
estava na liberação do solo e na levitação provocada pela leveza do desenho de
cobertura viabilizada pela técnica moderna. Na cobertura do MAR a leveza dos
pilares de apoio, no limite de esbeltez, revela a intenção de fazê-la pairar
sobre os prédios existentes (com todos os riscos técnicos decorrentes, como o
efeito cortante no encontro com a laje e a flambagem dos perfis pelo peso da imensa
casca de concreto). Contudo, a aleatoriedade da curvatura do plano afasta-se da
graciosidade do desenho de Niemeyer, e denuncia uma tensão contemporânea entre
o formal e o informal: a figura é geometricamente retangular, mas as
ocorrências curvas obedecem a uma livre rítmica. Tal fluidez remete mais a um
plano líquido, cuja oscilação varia com as condições atmosféricas vigentes. Aí
se mostra o melhor do projeto: quando a luminosidade do dia atinge um nível tal
que faz vibrar todas as superfícies, tornando-as planos iluminados. Nesse
instante de epifania luminosa a obra, sobretudo, o edifício modernista, se
transforma em dispositivo radiante numa perfeita simbiose com o meio ambiente
ao redor e a cobertura fluida reflete a luz por baixo. Mas sabemos que tais instantes
se esvaem rapidamente, então a cobertura assume a função de ser área de sombra
com peso visual atuando no sentido da força de gravidade. Aí a cobertura pesa.
Essa diferença também se deve às múltiplas condições de visada da edificação e
dos distintos modos de visualização do projeto.
Quando o
conjunto é visto em plano frontal, tal como nos desenhos de elevação, o plano
desaparece para dar lugar à linha sinuosa. Há correspondência proporcional
entre a dupla altura do pilotis no bloco modernista, a cúpula do Palácio e a cota da nova cobertura. No entanto, a
vista mais comum de quem se aproxima e adentra a obra é a do nível do chão.
Desse ponto de vista, que é diagonal, a cobertura parece muito elevada,
especialmente quando passa a cobrir o edifício eclético. Nessa visada de baixo
para cima cobertura aparece grande, pesada e, no limite, deselegante. Essa
paradoxal diferença é reveladora da crucial diferença entre o concebido e o
percebido.
maquete do MAR |
Elevação |
O plano da
concepção ocorre mediado por sistemas de representação e de equivalência.
Plantas, cortes e elevações em escala prefiguram o objeto antes de sua
corporificação. É claro que são uma simulação abstrata porque abstraem várias
condições da realidade empírica. Numa visão em elevação, o centro de gravidade
da visão coincide com o ponto médio da composição. De certa distância e a certa
altura, temos a visão ideal do conjunto (que no caso do MAR ocorre mais ou
menos no centro da Praça Mauá e mais ou menos a 5 metros do solo). Mas no plano da percepção sensível, o
campo está sempre mudando, pois a visão se dá em movimento e os ângulos de
visão variam a cada passo. Não há centro ideal, não há posição para a
apreciação da obra. Muito menos, aquilo que está ao lado e ao fundo surge de
modo secundário. Na percepção, já nos ensinou Merleau-Ponty acerca de Cezanne,
tudo aparece simultâneo ao campo da visão.
Nessa profundidade total, o corpo íntegro percebe e concebe o espaço. Quer
dizer: o que vemos nas representações de projeto não é o que percebemos no
espaço real. Movimento e contaminação são inerentes ao estar no espaço, a
possibilidade de uma condição ideal de visada, só sob condições muito
controladas.
Não creio que os
maiores problemas do edifício decorram das deficiências de construção, pelo
acabamento tosco, pelos detalhes imprecisos, pelos materiais de qualidade
duvidosa, pela pressa em inaugurar a obra, etc. Desconfio seriamente que os
problemas que percebemos sejam mais profundos, graves, básicos, mesmo. O
problema é anterior, encontra-se no plano da concepção. Isso quer dizer que o
MAR seja um mau projeto? Não necessariamente. Mas este me parece o principal
problema: somos incapazes de afirmar se o projeto é bom ou limitado, se tem
boas ideias ou se é gesto autorreferente e hedonístico.
A cobertura é
engenhosa e inteligente, no entanto, nos colocando do outro lado da praça, no
início da Av. Rio Branco, seu efeito é problemático: ao unificar dois
tornando-o um ela monumentaliza a obra.
A passarela suspensa, igualmente, é lance inesperado e prova que
circulação pode ser expressiva, mas se esconde na fachada dos fundos e,
espacialmente, mais desconecta que integra. A continuidade espacial é plena na
Escola do Olhar, mas no Museu é interrompida. À busca de máxima variação na
escola encontra antítese no modo homogêneo e esquemático da divisão espacial
repetitiva do Museu: seus quatro pavimentos não se diferenciam, tudo se torna o
mesmo. A liberação do pilotis como espaço-praça encontra limite no fechamento
de dois lados do perímetro (isso desconsiderando-se os panos de vidro que a
vedam para a Praça Mauá) e, apesar de voltar-se para a Praça, a praça não é
superfície que continua, não entra no espaço do MAR, não se comunica com o
tecido ao redor. O aproveitamento da marquise do antigo terminal rodoviário é
arqueologia inteligente, mas ocupa-la com funções meramente secundárias
bloqueia a fluidez do espaço, transformando-a em mera faixa de serviços. O
terraço oferece um horizonte deslumbrante, mas é apenas parte (a mais
privilegiada) da paisagem. O lado oculto, a outra paisagem é tecido truncado,
cheio de disparidades, de tipologias tradicionais entremeadas por arranha-céus
abruptos, parte morro, parte vegetação, parte casas empilhadas, parte grandes
armazéns abandonados. Essa outra paisagem é que está efetivamente está em
movimento e modificação pelas vias redesenhadas, pelos túneis escavados, pelas
vias subterrâneas, pelos novos empreendimentos imobiliários, justamente o lado desconsiderado
como possibilidade de visada.
Vista do complexo da Policia Federal |
Vista da rua Sacadura Cabral |
Vista da Avenida Venezuela |
Vista do Morro da Conceição |
A vista liberada
para a baía, a destacada fachada, a abertura visual para a praça, enfatizam uma
imagem parcial. Aí a ironia maior se revela: para uma instituição que tem a
ambição de se colocar como “Escola do Olhar”, nem todos os olhares parecem
incluídos nessa equação.
O problema do
projeto do MAR em minha opinião é a falta de radicalidade. Várias ideias
interessantes são esboçadas, mas nenhuma é assumida com radicalidade, de modo
decidido e decisivo. A consequência dessa carência é sempre o compromisso, a
busca de “harmonizações” que recaem quase sempre na solução da forma
compositiva.
Outra debilidade
seria a pouca complexidade, ou mais exatamente, a carência de problematicidade.
Afinal, o MAR faz parte do processo mais amplo que coloca a cidade em questão.
Não incluir o que efetivamente está em jogo nesse processo de transformações
urbanas em curso – o jogo político, os interesses econômicos, a retórica
propagandística da mídia, o discurso em favor da renovação que mascara a
destruição evidente, a indistinção entre os interesses públicos e privados, a
falta de transparência orçamentária – para pensar apenas e exclusivamente em
arquitetura, concentrando-se somente no objeto arquitetônico reduz o fato
arquitetônico á condição de mero ornamento na construção da cidade, aquilo que
oferece uma face de beleza e impacto num primeiro momento, mas numa sociedade
de imagens, sabemos que a mais nova imagem tende a se esgotar, para ser logo
substituída pelo novo espetacular.
A euforia atual
com a retomada do ciclo construtivo na cidade do Rio de Janeiro por conta dos
investimentos gerados pelos grandes eventos não quer dizer automaticamente a
emergência da “nova arquitetura carioca”.
X
Ninguém pode ser
ingênuo para acreditar que a arquitetura pode resolver todos os problemas, nem
muito menos acreditar que o processo de projeto é um “céu de brigadeiro” que
flui de modo tranquilo e contínuo. Há pressões de toda a espécie, negociações
com poderes de decisão além do arquitetônico, conciliações necessárias com as
exigências técnicas, concessões aos caprichos e à imprevisibilidade da
política, limitações econômicas, ajustamento a cronogramas irracionais e um sem
número de fatores envolvidos e igualmente complexos.
Mas quem é do
ramo, sabe que há decisões de projeto e mesmo considerados os fatores exteriores,
por alguns instantes, sob o regime de um código exclusivo aos arquitetos, de
posse de um saber específico, ele sabe que pode em algum grau subsumir todas as
complexidades e definir, escolher, optar por entre alternativas apresentadas
aquela que, de posse de plena autonomia, achar a mais sintonizada com seu modo
de pensar, de ver a realidade, de expressar sua verdade em arquitetura.
[3] O único traço de pré-existência são as colunas
clássicas na primeira fila de apoios, com seu capital compósito. No entanto,
encontram-se meio escondidas tanto pela montagem , especialmente a do 4º
pavimento com seus esquemas circulares, quanto pela indistinção cromática em
relação ao teto e as paredes museográficas.
[4] Até mesmo esse voltar-se para praça é relativo, uma
vez que essa linha divisória é fechado por painéis de vidro. Com 3 lados
fechados, a ideia de fazer do pilotis uma praça só funciona a rigor na entrada,
na parte mais para a extremidade fica com ar de indiscutível abandono. Razões
de segurança devem ter contado para tal proteção, especialmente neste momento
em que a Praça é um imenso canteiro de obras. Talvez após a conclusão das obras
os painéis de vidro possam ser retirados. O espaço, sem dúvida, ganharia muito
com tal liberação.