RIO 2016 – a arquitetura do empreendedorismo estético*
Se até as Olimpíadas de Los
Angeles de 1984, o esporte ainda se alinhava simbolicamente com as disputas nacionalistas
e/ou disputas ideológicas entre o bloco capitalista e o socialista, após a
queda do Muro de Berlim, em 1989, o cenário se alterou e os jogos logo
entrariam na Era da Globalização. Nesse novo estágio, os jogos de Barcelona de
1992 se impôs como paradigmático. O sucesso do empreendimento transformou
a cidade catalã e sua imagem tornando-a um centro turístico atrativo e sedutor,
singular em sua história e cultura e ao mesmo tempo cosmopolita em sua
modernidade e inovação.
O momento espanhol era extremamente
positivo, conjugava dois fatores fundamentais:
a redemocratização do país após a queda do regime de Franco e o
crescimento econômico após a integração na comunidade europeia. Após longo
período de decadência, a cidade viu a oportunidade de recuperar vitalidade com
o projeto olímpico.
Em termos de gestão urbana, o
modelo adotado se inseria já dentro das políticas neoliberais inauguradas na
década anterior com o encolhimento do papel do estado na regulação e condução
de políticas públicas, inclusive com corte no repasse de verbas federais para
estados e municípios. O próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) precisou se
adequar às novas políticas, aproximando-se igualmente do mercado com uma
estratégia mais agressiva de marketing com as grandes empresas esportivas, e
transformando os jogos em um evento midiático global. Assim o esporte se
tornava espetáculo assistido por milhões de espectadores.
Do ponto de vista que nos importa
– a do planejamento urbanístico – a ação dos administradores públicos e dos
urbanistas catalães abrangeu a cidade como um todo, que desde a década anterior
já tinha elaborado um Plano Diretor, dando
base às ações planejadas que consistira na recuperação do centro
histórico, na revitalização da área do porto, na criação de novas
centralidades, na melhoria do sistema de infraestrutura de transporte, na
construção de grandes edificações esportivas e culturais e no investimento
forte nas novas tecnologia, sobretudo, as de comunicações pela expansão da rede
de fibras óticas.
Das edições subsequentes dos
jogos, cabe destacar duas em particular: Pequim 2008 apostou suas fichas na
grandiloquência de suas principais intalações, o Cubos d’água e o Ninho de Pássaro; Londres 2012, ciente do
início da resseção mundial assume uma postura objetiva e realista e retoma o
modelo de Barcelona de valorização da cidade (e não de sua arquitetura
espetacular) e da preocupação com o equilíbrio social. Os contrastes entre os
projetos de Pequim e Londres são evidentes: um, regime comunista que censura a
liberdade de expressão, decide exibir sua modernidade e poder investindo na ostensiva
(e custosa) retórica arquitetônica desenhada pelo Star System da arquitetura contemporânea; outro, um governo de
esquerda rebaixa o monumentalismo arquitetônico para valorizar a dimensão
social do legado. A decisão de locar o Parque Olímpico na parte leste de
Londres, no bairro industrial de Stratford, zona proletária pobre e
desassistida em relação à City e a
parte oeste, exprime claramente a intenção de reequilibrar o tecido urbanístico
e social, favorecendo as camadas populares e segregadas da área periférica da
cidade. Evidentemente que a avaliação do legado londrino ainda está por ser
realizada, mas o que nos interessa na comparação Pequin/Londres são os modelos
adotados e como o projeto olímpico da Rio 2016 dialoga com estes tendo
novamente como paradigma o caso de Barcelona 1992.
A candidatura do Rio se apoiava no
bem-sucedido Pan de 2007, e reaproveitou parte desta infraestrutura para as
Olimpíadas 2016, em seus três polos principais: Barra da Tijuca concentrando a
maioria das arenas e a vila olímpica, o estádio do Engenhão e o complexo de
Deodoro.
Neste ponto já notamos a
diferença para com o projeto social de Londres, na medida em que ao reiterar o
foco sobre a região da Barra, reproduz e intensifica o sentido dominante do
crescimento imobiliário que vem ocorrendo na região urbana do município. A
grande concentração de intervenções na zona sul da cidade complementa o
programa traçado de fortalecer as centralidades já existentes.
O projeto urbanístico vencedor do
concurso organizado pelo IAB-Rj foi o do escritório inglês AECON, o mesmo que
fez o Parque de Londres. Na península triangular se implantam as principais
modalidades esportivas, bem como o centro de transmissão e a vila da mídia,
áreas de lazer e estacionamento. Uma ampla via sinuosa corta o terreno no meio,
concentrando a maior parte das instalações esportivas na parte leste, na oeste
apenas as arenas de natação e tênis. A razão desse partido é liberar a área
após o evento para dar lugar à construção de edifícios de apartamentos, e assim
converter o parque em bairro residencial de alto padrão, o mesmo ocorrendo com
a Vila dos Atletas nas proximidades. As opções são claras: o usufruto pós-jogos
será da alta classe média carioca.
Em termos de arquitetura, a do
Parque Olímpico é quase indiferente: impressiona num primeiro olhar, mas
esgota-se rapidamente. As arenas buscam, cada qual ao seu modo, uma expressão
diferenciada, mas não alcançam a singularidade espetacular das arquiteturas de
Herzog & De Meuron ou de Zaha Hadid para Pequim e Londres. Nada parece
expor melhor esse desejo frustrado que os interiores das arenas, todos padronizados pelas regras impostas pelos comitês e confederações e
pelo marketing olímpico. O projeto urbanístico é mais “caprichoso” no desenho
de pisos e paisagismo, os pavilhões são imensos e, em certo sentido genéricos. A
arquitetura do espetáculo, de fato, ficou guardada para a Praça Mauá.
A revitalização da zona portuária
não estava contemplada nem no projeto do PAN nem no documento de candidatura das
Olimpíadas, mas foi incluída posteriormente como estratégia da expansão comercial
e cultural do centro histórico do Rio. O estágio de abandono dos grandes
armazéns do cais e a deterioração dos antigos bairros da Gamboa, Santo Cristo e
Providência reiteraram a importância e a urgência de intervir na área, dando
origem ao projeto PORTO MARAVILHA. Primeiro, promoveu-se uma mudança na
legislação do uso do solo liberando o gabarito e a densidade de ocupação da
faixa ao longo do porto, estabelecida sob o regime das parcerias
público-privada para viabilizar os recursos para financiar as obras de
renovação. O mecanismo adotado foram as CEPACS - Certificados do Potencial
Adicional de Construção -, títulos para financiamento das Operações Urbanas
Consorciadas. A nova lei define um aumento do potencial de construção para ser
explorado por empresas privadas através da compra das CEPACS. O dinheiro da
venda seria então revertido para custear as obras e serviços da renovação
urbana da área.
O elo de ligação, e, portanto, de continuidade
entre o tradicional centro histórico e de negócios do Rio e a renovada zona
portuária se localizou na Praça Mauá. Ali arte, arquitetura e paisagismo
encontraram o seu grande palco. Nenhuma outra intervenção exprime melhor a
ideia da cultura do espetáculo que a Nova Praça Mauá (incluindo-se, é claro, o
Boulevard Olímpico e a Orla Conde) com seus equipamentos culturais (museus,
monumentos históricos, equipamentos e áreas de lazer) e vista deslumbrante para
a baia de Guanabara, consequência da demolição do elevado da perimetral que
seccionava a área.
A região da nova praça é, em
certo sentido, a síntese das aspirações da cidade do Rio de Janeiro pelos
grandes eventos. Árida e abstrata, a nova Praça tem por função se colocar como
palco de chegada dos transatlânticos turísticos e mirante de contemplação da
paisagem da baía. As duas instituições culturais – O Museu do Rio de Janeiro e
o Museu do Amanhã – evidenciam a contradição fundamental do projeto de cidade do
urbanismo olímpico. O MAR representa a conciliação do passado com o presente: o
palácio eclético e o edifício modernista unidos pela jocosa cobertura sinuosa.
A história do Rio de Janeiro é o seu conteúdo, por isso toma como partido
curatorial expor as singularidades da cultura, do passado, da vida carioca. O
Museu do Amanhã representa o voo para o futuro, essa promessa de redenção
trazida pelo novo ciclo de prosperidade. Com sua arquitetura espetacular, ele é
a expressão da linguagem internacional, lugar de todas as línguas, sotaques e
idiomas. Essa arquitetura poderia estar em qualquer localização pois o seu
usuário-tipo é o turista. O ponto em comum entre os dois museus é a abertura
para a deslumbrante paisagem da baía da Guanabara.
Por fim, o Parque Olímpico de
Deodoro, construído na área militar, recebeu novas instalações para as
competições menos divulgadas como canoagem, tiro, hipismo, ciclismo, montaim
bike e outros, com a promessa de legado que a área se converta num grande
parque de esportes radicais e de lazer para a população da região. O complexo
de Deodoro é o que tem menos evidência na cobertura da mídia, embora se
encontre na área de maior densidade habitacional da região metropolitana do
Rio.
Os Jogos ocorrerão em 4 regiões
da cidade: Barra, Deodoro, Maracanã e Copacabana. Logo a conexão entre tais
núcleos se tornou prioritária no projeto olímpico da cidade. Uma série de
alternativas foram abertas para implementar a mobilidade urbana como a expansão
do metro com a linha 4 e introdução do sistema de ônibus rápido (BRT) e
veículos leves (VLT). Acrescente-se os investimentos na área de segurança
pública (apesar da crise atual do Estado), que começaram muito antes com a
implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), em vista da
preparação para outro grande evento que antecedeu as Olimpiadas: a Copa do
Mundo de 2014.
O discurso oficial da
administração municipal não cansa de afirmar que o custo das obras foi
financiado em grande parte pelo capital privado pouco mobilizando a verba
pública. Esse modelo de gestão ficou conhecido como o novo empreendedorismo. Se
a parceria com a iniciativa privada se justifica pela agilidade, flexibilidade
e mobilidade, fatores que a burocracia do estado não consegue ultrapassar, o
que fica em suspenso (intencionalmente, eu diria) é o papel da autoridade
pública. Na retórica oficial tudo se sintetiza em uma palavra: legado. Melhoria
na mobilidade urbana, criação de novos empregos, acréscimo de áreas públicas,
atração de investimentos, visibilidade internacional. Porém não só de promessas
de futuro se alimenta a retórica oficial, outra mais perniciosa, reiteradamente
acionada, foi a de, em nome dos prazos exíguos e da necessidade das obras,
invocar argumentos de “força maior” para justificar e implementar as mudanças:
decisões não passíveis de discussão e avaliação, mecanismos legais de dispensa
de licitações, verbas adicionais invocadas, alterações súbitas no projeto-base,
enfim, um conjunto de deliberações tomadas entre as instancias (administração
pública, FIFA, COI, COB, empresas patrocinadoras) sem participação da sociedade
civil configurando um processo obscuro e arbitrário. Apenas para dar alguns
exemplos, tomemos incialmente o caso da linha 4 do metro. Até agora não houve
uma explicação razoável (técnica, econômica ou política) para a adoção do
trajeto único e linear, atravessando meia cidade. A lógica do sistema de metro
predominante se define por um conjunto de linhas articuladas, para garantir uma
cobertura mais abrangente do serviço. A opção pelo trajeto linear implica na
sobrecarrega das composições e das estações ao longo do percurso, contrariando
a lógica de distribuição adotada para qualquer transporte público de massa.
Quanto às remoções desencadeadas
em nome da retórica do progresso, chega-se a números assustadores. Segundo
pesquisa realizada pelo arquiteto Lucas Faulhaber e a jornalista Lena Azevedo,
baseada em dados oficiais levantados junto à Secretaria Municipal de Habitação
foram 67 mil pessoas removidas. E da agenda da sustentabilidade anunciada
rigorosamente nenhuma se realizou, a começar pela despoluição da Baia de
Guanabara e das lagoas da Barra e seus canais e da recuperação da Lagoa Rodrigo
de Freitas. Por fim, o trágico se antecipou com o acidente na ciclovia Tim Maia
(complemento luxuoso ao projeto olímpico) que vitimou duas pessoas, resultado
de um projeto mal concebido e de uma execução irresponsável de firmas
construtoras, cuja reputação hoje encontra-se completamente questionada. Os
engenheiros e suas empreiteiras precisam ser questionados em suas
responsabilidades sociais e políticas. O argumento técnico não mais serve como
álibi, nem muito menos o discurso da infraestrutura como imperativo para o bem
coletivo tão banalmente acionado para justificas grandes obras.
As repercussões dessa parceria
entre público e privado na esfera do urbanismo são evidentes e sintomáticas.
Quando o Estado tinha atribuições regulatórias tanto do uso e construção do
espaço físico como da implementação de políticas públicas visando suprimir
desequilíbrios sociais, o urbanismo tinha a totalidade da cidade como objeto de
suas estratégias e formulações. O modernismo aceitou o desafio e desenvolveu
metodologias de ordenação do espaço físico para assim garantir o bem coletivo,
porém a eficácia e viabilidade de suas proposições dependia de uma forte
centralização das decisões políticas. Com a crise do modernismo, surgiu a
desconfiança para com qualquer modelo totalizador, e a cultura do local e do
fragmento se impôs no pós-modernismo. No Rio de Janeiro, vimos tal mudança de
concepção com o projeto Rio-Cidade, elaborado pelo arquiteto, urbanista e
depois prefeito Luiz Paulo Conde, cuja ideia propulsora fora revitalizar os
principais corredores da cidade para desse modo incrementar a qualidade de vida
e irradiar sua energia renovadora na escala do bairro, configurando-se desse
modo uma operação flagrantemente contextualista.
A lógica do “urbanismo olímpico”
é completamente distinta: sua estratégia é realizar “grandes projetos urbanos”[1]
capazes de atrair investimentos e desse modo trazer vitalidade econômica,
especialmente pela valorização imobiliária, para áreas novas ou requalificadas.
A intenção é apresentar a cidade
como um lugar inovador, estimulante, atrativo com instalações modernas e adequadas
para se visitar e consumir[2].
A lógica do marketing e do capital imobiliário define outro modo de ação e de
determinação de prioridades, um outro planejamento. Um investimento maciço é
mobilizado para criar zonas de alta tecnologia e interatividade, intensificando
centralidades existentes e requalificando outras para produzir uma nova
sinergia. Porém, o mais perturbador é que essa lógica não considera a questão
da desigualdade urbana e social, muito ao contrário, aceita tal condição e a
estimula.
Os grandes eventos não pretendem
minorar a histórica desigualdade do Rio de Janeiro, antes buscam fortalecer
potencialidades existentes e incentivar vocações potenciais.
Nessa lógica do capitalismo
tardio, o urbanismo perde sua importância de instancia regulatória e
organizacional do território, e a arquitetura deixa de lado sua preocupação com
o programa de natureza social e com o ajuste rigoroso entre funcionalidade,
economia e razão estrutural para se converter em imagem sedutora para atrair
uma nova massa de consumidores. Contudo, frente à competição entre os grandes
centros para captar novos olhares, a cidade deve contrabalancear a imagem de
pulsante espaço cosmopolita com a afirmação da sua particularidade em relação
aos seus competidores. Assim, o Rio 2016 deve oferecer estruturas tão ou mais
modernas quanto as competidoras, logo, deve ser equivalente a elas em brilho,
velocidade e espetáculos, mas isso paradoxalmente significa se igualar a todas
as demais cidades. Por isso, ela deve simultaneamente produzir a imagem de que
se trata de uma cidade única, singular, inigualável: Rio Cidade Maravilhosa do
século XXI. Trata-se, portanto, de uma “guerra de imagens” e aí a cultura
assume importância na confecção desse capital simbólico[3]
colocando a estética a serviço do empreendedorismo urbano.
* Este texto é uma versão
revisada e ampliada do artigo que publiquei em CADERNOS GLOBO nº 10 – “Somos
todos Olímpicos”, lançado durante os Jogos Olímpicos do Rio 2016. O título
inicial era “Urbanismo Estético”.
[1]
NOVAIS, P. “Urbanismo na Cidade Desigual: o Rio de Janeiro e os Megaeventos”. R.
B. ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS V.16, N.1, p.11 / MAIO 2014.
[3]
IDEM, p. 235