sábado, 23 de fevereiro de 2013


PATRIMÔNIO MODERNO – parte II
INSTITUTO VITAL BRAZIL – O PRIMEIRO FUNCIONALISMO




Fora do circuito mais célebre da nossa modernidade arquitetônica, refiro-me àquele formado pela equipe que projetou o MES – Lucio Costa, A. E. Reidy, J. Moreira, O. Niemeyer, C. Leão e E. Vasconcellos – a obra de Álvaro Vital Brazil (1909-1997), apesar de contundente, é pouco conhecida e divulgada.  Formado em 1933, Vital Brazil passou pela reforma de ensino da ENBA, por iniciativa do então diretor Lucio Costa, se colocando em favor da modernização proposta, reagindo contra o ensino acadêmico, pautado pelo historicismo e pelo neocolonial.  Até 1938, data em que recebeu a encomenda do Instituto, o arquiteto projetou algumas residências, em que é visível a influência de Gregori Warchavichik, e realizou uma obra de grande repercussão em São Paulo: o edifício Esther.
É preciso lembrar que embora conhecesse as teorias e projetos de Le Corbusier, Vital Brazil não compartilhou do convívio, em 1936, com o mestre franco-suiço no projeto do MES e da Universidade do Brasil.
É nesse justo ponto que o Instituto Vital Brazil ganha particular interesse e valor histórico. Justamente por concretizar uma modernidade bruta, não lapidada pelo geômetra cubista Le Corbusier. Superado o hibridismo do Ed. Esther (1936), o Instituto exibe a funcionalidade radical de sua forma, a ponto dessa literalidade pragmática se encontrar com a abstração planar. Tratou-se de um dos ensaios pioneiros de relacionar arquitetura moderna e ciência, não só por causa das exigências técnicas, mas porque o cientificismo foi uma das bases teóricas para a formulação de uma arquitetura que aderida ao seu tempo. Arquitetura fundada na ciência, ascética e higiênica, livres da contaminação do ornamento.

Laboratórios - Instituto Vital Brazil

Vital Brazil realizou um estudo detalhado das especificidades do programa com os técnicos da instituição, afinal se tratava de local para produção de soros, vacinas e produtos  farmacêuticos variados que exigiam equipamentos especializados e controle de fluxos, não só dos acessos quanto da circulação de ar e água, fator que determinou o desenho de um sistema de ventilação e exaustão (dutos que correm pelos laboratórios e seguem para shafts), afim de evitar os riscos de contaminação e proliferação de gases nocivos.  Toda essa máquina higiênica foi contida numa volumetria puríssima e dimensionada rigorosamente conforme o cálculo do uso e ditada pela necessidade de ajuste preciso às restrições orçamentarias impostas.
Uma barra horizontal sobre pilotis interceptado assimetricamente por elemento vertical, performando um jogo de formas geométricas puras. O bloco extenso concentra os laboratórios e o vertical abriga os acessos e sanitários, complementado por um corpo horizontal baixo do almoxarifado. É notória a influência da organização espacial do MES, estabelecida na distinção formal e funcional pelo cruzamento de unidades volumétricas para abrigar setores diferenciados. 

Le Corbusier - Pavilhão Suiço - 1931-33
Rigor construtivo e uma planta austera se impôs o que, no entanto, não redundou numa construção vazia e estéril, tão somente voltada para resolução técnica de requisitos práticos. Não havia uma fachada tão radicalmente abstrata quanto à do Instituto Vital Brazil, um plano luminoso puríssimo perfurado por pequenos quadrados, cujo alinhamento que não denunciava a divisão antropomórfica dos pavimentos. A outra face é toda vazada para deixar a luz plena entrar. A referência ao Pavilhão Suíço (1931-33) é nítida, no qual Le Corbusier, de modo imprevisto e por isso extraordinário, consegue ativar o plano da fachada recorrendo ao tipo convencional de abertura: a janela como vazio contra o cheio da parede.

Planta-baixa - Instituto Vital Brazil


Na planta essa diferença de tratamento entre as fachadas do instituto se esclarece: na face norte, mais hermética, situa-se o corredor de circulação, na face sul localizam-se os laboratórios: duas configurações espaciais, duas modulações luminosas. Álvaro Vital Brazil demonstrava que uma atitude funcionalista não era incompatível com a inventividade arquitetônica e isso no elemento mais literal do diagrama da função: o corredor não é apenas uma ligação mais direta entre dois pontos, também se converte em túnel de luz. Atravessando-o percebemos que as filas das pequenas aberturas correm à razão de duas por pavimento, uma abaixo e outra acima da linha de visão mediana. Aí entendemos que não são janelas para ver, mas vãos para deixar a luz deslizar no piso e no teto e se encontrar na parede oposta. Aí vemos um corredor sem sombras, onde todos os planos são claros.


Corredor - Instituto Vital Brazil

O Instituto seria a perfeita corporificação do purismo na arquitetura, no qual o típico e o contingente encontram um ponto comum, aquilo que Le Corbusier chamou de “padrão”. A contingência é a estrita adesão às necessidades e aos recursos técnicos do presente volátil  moderno, o tipo a forma mais depurada obtida por esse autêntico indutor da “evolução das espécies” que é o processo de projeto e que ao final alcança o átomo plástico irredutível.
Não é nada fácil chegar a tal “essência”, nem seria, reconheçamos desejável. A rigor, não haveria esse “irredutível absoluto”. Antes do evento do Ministério da Educação e Saúde, houve no Brasil, a meu ver, uma fase  entre as décadas de 1920 e 30 desse tipo de funcionalismo não esclarecido, de ligação direta entre função e forma, conformando uma espécie de “metodologismo” no qual bastava alinhar as razões práticas e materiais e crer que estas se encontrariam em perfeito ajuste com formas básicas, carentes de ornamentos. A economia e a objetividade são os conceitos-chave dessa equação. É fácil flagrar esse esforço de compreender e praticar a nova arquitetura nos projetos iniciais de A.E. Reidy, Jorge Moreira, Henrique Mildlin, M.M. Roberto e naturalmente Álvaro Vital Brazil, todos visivelmente impactados com os exemplos arquitetônicos de Gregori Warchavichik.
Nessas primeiras tentativas o que se percebia era ainda certo descompasso entre uma volumetria ascética com uma planta convencional, um plano puro apoiado de modo tradicional, com a estrutura tratada como item secundário e, por isso, oculta.
Não obstante o racionalidade do projeto, o Instituto Vital Brazil expõe certos  “desalinhamentos”. Apesar de sua volumetria ascética e abstrata, a implantação segue o padrão convencional, mantendo a distinção entre frente privilegiada com jardim e fundos reservado para atividades secundárias. Se a fachada é já um plano moderno, um objeto ativo por si mesmo, seu caráter exteriorizado e opaco mantém a distinção entre interior e exterior. Não há vazão do espaço para além desse plano. Dois outros componentes aos quais caberia a função de incentivar a continuidade espacial – o pilotis e o terraço jardim – são tratados ou de modo tímido ou apenas como algo em si mesmo, não contribuem para o sentido de continuidade e comunicação espacial. O pilotis é praticamente todo fechado (exceto por pequeno vão entre os vestiários), e suas proporções magras e alinhamento coincidente com o perímetro da edificação confundem a plena afirmação da fachada livre; o terraço, apesar da delicada linha do guarda-corpo, não tem uso definido a não ser as funções técnicas de manutenção dos elevadores e da caixa d’agua.


Caixa d'água no Terraço - Instituto Vital Brazil

Pilotis - Instituto Vital Brazil

Apesar de todo o esforço, não há como não perceber certa limitação na interpretação dos 5 pontos de Le Corbusier. É reconhecível como estes são tratados de modo individual e pragmático, procurando esgotar a lógica intrínseca de cada item, mas sem ponderar completamente a elaboração da composição geral. Faltava uma compreensão estrutural do modo de concatenação linguístico. Não bastava elaborar a estrutura independente, se fazia necessário correlacionar a independência estrutural com a planta e a fachada livre, para que cada qual afirmassem sua diferença e ao mesmo tempo sustentassem a conjugação verbal com sistema geral.
Mas é constatação de tais impasses que o projeto ganha interesse.  Primeiro, porque revela todo empenho e esforço de nossos arquitetos em praticar a arquitetura de seu tempo, com todas as dificuldades de um pais distante dos centros da modernidade cosmopolita. Afinal, como saber os princípios da forma e do espaço modernos, se mal tínhamos compreendido os princípios construtivos da perspectiva. Álvaro Vital Brazil, como tantos outros, teve contato indireto com a arquitetura moderna praticada na Europa, por meio de textos, manifestos e parcas imagens em revistas da época. Não teve a oportunidade de conviver com Le Corbusier na elaboração do projeto do MES. Por um lado, essa fase de funcionalismo ortodoxo demonstra que havia, antes da vinda do mestre, uma disposição para o moderno na arquitetura, o que de certo modo desconstrói o mito de origem da arquitetura moderna no Brasil com o evento Le Corbusier. Mas por outro, deixa claro o significado e a importância da “oportunidade Le Corbusier” e como, de fato, isso implicou numa apreensão plena dos preceitos da modernidade arquitetônica entre nós. Tudo isso possibilita aferir com maior precisão histórica e crítica os esforços e as conquistas de nossa arquitetura moderna.  

(no terceiro e último post da série, a análise dos projetos em desenvolvimento para o IVB)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


PATRIMÔNIO MODERNO

No Brasil, a invenção do patrimônio foi obra dos modernistas. Aqui, coube aos defensores do Novo à preocupação com a preservação e restauração dos monumentos do passado. Mario de Andrade, Lucio Costa, Rodrigo Melo Franco Andrade, entre outros intelectuais e artistas, deram início, em 1937, com o apoio do Ministro Gustavo Capanema ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), um ano depois da vinda de Le Corbusier e do projeto do Ministério da Educação e Saúde. Nas primeiras décadas, o alvo prioritário do SPHAN foi o patrimônio colonial, sobretudo, da região das Minas Gerais.
Nas décadas seguintes vimos não só a afirmação, mas a vitória monumental da arquitetura moderna, cujo ciclo se estendeu entre nós muito além da crise do moderno decretada na década de 1960, na Europa e EUA. Ao nosso modo, simultaneamente experimentamos e repotencializamos a tradição do novo (para usar o termo de Harold Rosemberg), algo não muito distinto das artes plásticas, com o projeto construtivo no Brasil, cujas questões continuaram a reverberar pelo menos até o final da década de 1990, com a obra instigante e paradoxal de Eduardo Sued.
Hoje, vivenciamos o momento em que o moderno é patrimônio. De saída, a questão  que se coloca é como renovar aquilo que se pretendia o novo? Claro, desde 1932, quando Philipp Johnson e Henry-Russel Hitchcock sintetizaram os princípios do “International Style” (volume sem massa, construção por planos, supressão do ornamento, equilíbrio assimétrico) ficou possível analiticamente decodificar os elementos sintáticos da linguagem moderna. A questão semântica, o outro lado da moeda, já era conhecida sob o nome de função. O léxico básico da arquitetura moderna no Brasil, nas primeiras décadas foi estabelecido, sem dúvida, pela concatenação dos 5 pontos da arquitetura de Le Corbusier no edifícios do Ministério da Educação e Saúde.  Como se tratasse de um edifício institucional público, serviu de modelo e inspiração para diversos programas similares.
Mas o problema não se resume a identificação de um vocabulário estilístico. Revitalizar, renovar, reutilizar, seja lá o que se propor com o prefixo “re”, significa enfrentar o dilema de reatualizar o novo como passado. Como situação de projeto, trata-se de uma ocasião interessante de se flagrar nossa distancia do moderno, e eventualmente nossa diferença contemporânea.
Um caso oportuno, nesse sentido, que está em curso é o do edifício-sede Instituto Vital Brazil, projeto de Álvaro Vital Brazil. Pelo menos, dois projetos estão sendo desenvolvidos, um de construção de um anexo, outro de reforma e reutilização do edifício original. Não me interessa, aqui, fazer uma avaliação qualitativa dos novos projetos, apenas pensar algumas questões de projeto que este problema coloca.
Antes de mais nada, cabe uma consideração histórica, começando pela pergunta sobre que gênero de novo o projeto de Álvaro Vital Brazil vislumbrava à época.

(continua no próximo post)