NOTAS SOBRE
LYGIA CLARK
Uma Cumulus Nimbus retroativa. Tinha feito
alguns apontamentos logo após ter visto a exposição “Lygia Clark: uma
retrospectiva”, no Itaú Cultural em São Paulo, curadoria de Paulo Sérgio Duarte
e Felipe Scovino. A exposição ocorreu entre setembro e novembro de 2012 e foi
uma das raríssimas oportunidades de se ver mais de uma centena de obras da
artista (algumas, inclusive inéditas).
X
PINTURAS
Trabalhos em
pintura, como as da série “superfícies moduladas” mostram bem o processo que
começa com o esquadrinhamento geométrico da tela, as divisões modulares que
servem de guia para a composição (operação parecida com as de Hélio Oiticica).
Contudo, o
modo como a artista estabelece as conexões entre os pontos para traçar as
linhas resulta numa configuração que a princípio desafia os códigos
convencionais do traçado geométrico assentado na lógica das relações
ortogonais.
Trata-se de um operar geométrico que resulta numa configuração que aparentemente o contradiz. No entanto, o método e a lógica são rigorosamente geométricos. Essa diferença significa não a negação, mas a busca de relações inéditas, inesperadas, para demonstrar que a geometria está aberta a tantas outras possibilidades, desde que estejamos dispostos a toma-la de modo experimental.
TREPANTES de
alumínio
Trepante (
1965) de chapa de alumínio apoiado em troncos de árvores é tocante. É um
frescor de adaptabilidade, de fluidez, de flexibilidade que espanta. Liberdade
de movimento, cumplicidade orgânica com suas bases, contaminação envolvente com
o espaço circundante. A superfície perfeitamente acabada e polida em
desenvolvimento sinuoso apoiada em base rústica forma uma contraposição que
lembra muito Brancusi. Achei uma peça bastante clássica, nesse sentido.
A leveza das
superfícies em livre desenvolvimento contrasta com a robustez áspera e pesada
da base, o brilho reluzente do alumínio
contrasta com a textura rugosa das cascas e dos veios fissurados dos troncos, a
qualidade metálica do metal contrasta com a organicidade vegetal da madeira.
A superfície
de alumínio reagindo a luz ambiente expele um brilho ofuscante, em
contrapartida suas qualidade de superfície especular captura os reflexos do
ambiente. Se as superfícies metálicas
atuam como rebatedoras de luz, as cascas de tronco com suas fissuras e irregularidades
capturam-na, aprisionam-na em seus meandros, criando contrastes entre luz e
sombra.
O encontro
entre estas duas entidades – planos curvos e troncos – com o espaço demonstra,
antes de mais nada, que a questão da artista é estimular modos de interação
espacial.
TREPANTE DE
TIRAS DE BORRACHA
Nesta obra,
Lygia Clark incorpora outro dado que nas peças de alumínio não comparecia. O
fato da tira de borracha ser um material flexível e elástico introduz a
possibilidade da manipulação orgânica do trabalho. De certo modo, os bichos já
apresentavam tal possiblidade, mas o movimento por causa das dobradiças ainda
se via restrito à ação mecânica. Os planos eram rígidos e a articulação
interdependente. Nesse trepante, a simbiose entre manipulação, forma e espaço
se dá de modo mais orgânico e sem resistência.
A cada
movimento, uma nova forma, outra relação espacial. Nesse mover-se no espaço e
do espaço, a percepção é renovada a cada instante. Assim, se estabelece uma
conexão entre USO e PERCEPÇÃO. A percepção é o uso
Aqui podemos
tecer algumas aproximações com a arquitetura, a partir do parâmetro do uso ou
participação do sujeito no espaço. O que a arte vem demonstrar é que o uso não
pode ser restrito ou limitado, ao contrário, que é sempre uma renovação do ser
no espaço. Na arquitetura, o uso se viu reduzido à ideia de utilidade, ao
parâmetro da funcionalidade, inviabilizando outras possiblidades de experiência
do espaço.
Na
arquitetura, uso é percepção igualmente. Os arquitetos fazem questão de fazer
emergir o espaço, como puro valor perceptivo de suas arquiteturas. Assim ocorre
nos projetos de Mies Van der Rohe, nos seus cubos cristalinos e transparentes.
Assim ocorre com a ideia da promenade em Le Corbusier.
Na arquitetura
brasileira, as possibilidades do uso não exclusivamente funcionalista do espaço
será aprimorado e, pode-se dizer, radicalizado. E isso, a meu ver, pelo modo
como concebem e desenham a geometria. Não a restringindo à condição ideal,
atribuindo-lhe valor interativo, sensorial e corpóreo, libera o espaço para o
jogo lúdico.
TREPANTES X BICHOS
Trepantes de
borracha apresentam uma condição de maleabilidade que não se verifica nos
bichos. Por um lado, os trepantes são muito mais disponíveis à interação. As
operações disponíveis, graças à elasticidade do látex, são torção, dobra e
tensão, contudo, devido as propriedades inerentes à borracha, essa ausência de
resistência faz com que a peça tenda sempre à retornar a sua condição original,
ou seja, à condição de repouso. A tendência desses trepante, paradoxalmente, é
aceitar a inércia da matéria, daí a
tendência à passividade e a dependência do ambiente em que se insere, aos
elementos de apoio e à ação da força de gravidade.
Os bichos,
embora estejam sujeitos às articulações mecânicas – a dobradiça e os planos
rijos – apresentam mobilidade continua e não reivindicam um retorno à condição
originária. A cada manipulação, uma configuração, um momento único, virtualmente
irreprodutível. Os bichos são um continuo processamento, uma descoberta inédita
a cada experimentação, daí a instabilidade básica que define o seu ser, por um
lado, e o caráter libertário, leve e a alegria que se conquista a cada
arranjo.
Por causa de suas placas de metal e das dobradiças,
os planos deixam a sua condição de estabilidade horizontal e assumem posições
tridimensionais. O próprio peso e rigidez das placas de alumínio se colocam
como índices de resistência que não se rendem totalmente aos estímulos do
espectador-participante. É por isso que as configurações se elevam e por um
breve instante se equilibram e ficam de pé. O material e as articulações são
funcionais, uma interfere na outra gerando um continuo de reações simultâneas,
próprias de um efetivo organismo.
Nesse jogo
aberto entre movimento e resistência, os bichos se revelam mais disponíveis e
adaptáveis à interação com a heterogeneidade do real, em suas condições
complexas e mutantes. Os trepantes partilham de uma condição unilateral, o que
lhes insufla vida é a falta de resistência do material, a forma está sujeita a
possibilidades de ação mais previsíveis e restritivas – torção, tensão, dobra –
advindas da maleabilidade do plano. De
fato, não ficam de pé, porque o plano não oferece resistência, limitando-se a
uma condição passiva e de inércia.
Outra
singularidade é que o princípio de articular planos e dobras se revela
disponível para infinitos arranjos. Dos triângulos e círculos, a artista
expande seu vocabulário chegando a montagens variadas e altamente complexas,
alcançando resultados que quase escapam da lógica geométrica que comumente
orientou tais experimentações com planos.
A pulsão
orgânica dos bichos é mais efetiva que dos trepantes.
X
LIMITE
“Caminhando” abre um caminho diferente: as
experimentações vão se radicalizando a tal ponto que obra e ato começam a se
confundir. O conceito de arte como objeto, que ainda se via nos “bichos” começa
a se dissolver. Nesse encurtamento de distâncias, o ato de participação se
torna prioritário, mas paradoxalmente o mundo exterior vai perdendo presença e
tangibilidade. São os sentidos internos os visados pela artista, os
dispositivos sensoriais (óculos, luvas, tuneis, roupas, recipientes, tubos,
máscaras, teias , linhas, etc) compreensivelmente começam a acionar os sentidos
do tato, olfato e audição, em detrimento da visão. A experiência que se queria
aberta e participativa vai paradoxalmente se tornando fechada, introspectiva:
uma canalização de estímulos para o interior. Aí, a forma é a duração.
Quanto mais as
proposições aproximam arte e participante, mais distante do público, no sentido
ampliado, vão ficando. Essa ruptura com o público, me parece, é o aspecto mais
radical e problemático na obra de Lygia Clark.