PATRIMÔNIO MODERNO – parte III
O CONTEMPORÂNEO COMO ATITUDE CRÍTICA
Na história da arte, é comum a
constatação de que uma pintura é um depoimento inédito do autor, mas é
igualmente o comentário de outra pintura. Velazquez tem em Ticiano uma fonte
profícua de diálogo, do mesmo modo que Velazquez é referência imprescindível a
Manet e a Picasso. Na literatura, com o pós-estruturalismo, afirmou-se que um
texto é sempre o comentário ou resposta a outro texto. Essa intertextualidade
instaura um jogo de linguagens, que não deixa de ser uma possibilidade interessante
de se confrontar as obras.
Na arquitetura, não há porque ser
diferente. Um projeto é a critica de outro projeto, no sentido de que o um não
se dá sem o diálogo com o outro. O projeto pode ser um texto que conversa com
outro texto. O patrimônio moderno encerra essa riqueza de possiblidades, sem
ter de nos render ao mito e a ideologia do moderno. Intervir nele é nos dispor
a esse diálogo.
X
O Instituto Vital Brazil
tornou-se um grande complexo. Várias unidades foram surgindo no terreno,
configurando uma estrutura urbanística muito distante do momento em que, em
meio a uma área ainda semi-rural (como se pode perceber pelas fotografias de
época) de Niterói. Instalar um laboratório fabril nessa região foi ato pioneiro
no campo da saúde pública, e não nos esqueçamos que se tratou de iniciativa do
mesmo Ministério da Educação e Saúde, muito associado em nosso meio às ações
culturais, mas pouco conhecido nas suas políticas sanitárias.
O impacto desse edifício de
linhas puras e formas límpidas, radicalmente distinto das construções existente,
e destinado a um programa científico deve ter sido impressionante. Na época de
sua inauguração, em 1942, o edifício concentrava todas as funções laboratoriais,
e o resto da área abrigava pavilhões mais rústicos para estábulos, cocheiras e
pastos. Isso provavelmente explica a implantação à frente do lote e a clara
distinção entre frente e fundos e também a importância dos vestiários (ocupando
os pilotis) logo à entrada.
Obviamente com a ampliação das
atividades do Instituto ao longo desses 70 anos, muitas unidades e instalações
surgiram onde outrora havia o local para os animais, e hoje temos um verdadeiro
campus. Fica evidente que apesar deste crescimento edilício, o local careceu de
um plano diretor que orientasse tais expansões.
À esquerda o acréscimo da Farmácia Popular |
Em 2003 foi implantado o programa
“Farmácia Popular” para cumprir a função de distribuir medicamentos à terceira
idade e atender à população menos favorecida. Apesar da importância social, em
termos arquitetônicos o edifício construído para abrigar a farmácia constituiu
em verdadeira agressão ao edifício existente. De modo canhestro, um galpão
banal foi “colado” ao edifício sem qualquer tipo de transição ou adequação (o
que revela o despreparo dos escritórios técnicos de arquitetura responsáveis –
se é que o são – por tais projetos). Com a construção de novas unidades de
pesquisa e produção no campus, as instalações abrigadas originalmente no
edifício original foram perdendo função, sendo já substituídas por órgãos
administrativos, o que levou a direção do Instituto a considerar a sua
revitalização. A proposta foi converter o todo edifício para funções exclusivamente
administrativas do complexo. O projeto coube ao escritório FÁBRICA ARQUITETURA,
e seus autores João Calafate, Caio Calafate, Pedro Varella, Sergio Garcia-Gasco
e Juan Texeira.
De início, coube uma avaliação
rigorosa da estrutura física existente. Como foi construída com muito apuro, a
estrutura de concreto armado se mantém em bom estado (lajes, pilares, vigas) bem
como paredes e pisos. No entanto, uma parte bastante degradada é a fachada sul,
com fechamentos improvisados e acoplamentos de caixas de ar condicionado, dutos
e canalizações grosseiras, resultantes das adaptações e atualizações técnicas
mais recentes. Após essas avaliações, seguiu-se
um intenso trabalho de programa junto à direção do instituto, para enfim, se
alcançar nos 3 pavimentos existente os usos específicos e suas dimensões
respectivas.
A liberação do pilotis e o descolamento do anexo - foto Pedro Varella |
A proposta para a ocupação do terraço - foto Pedro Varella |
A nova torre de circulação e a compatibilização com o anexo Foto Pedro Varella |
Além do novo programa, dois outros problemas se
impuseram: como minimizar o impacto da Farmácia Popular e, frente as novas
exigências do Corpo de Bombeiros, definir acesso alternativo e complementar ao
único existente. A proposta dos arquitetos consiste em provocar uma disjunção
entre o bloco da farmácia e o Instituto, como forma de resgatar a autonomia do
original, e simultaneamente erigir uma torre vazada de circulação no
prolongamento da face oeste, que pela leveza e elegância lembra as estruturas
do construtivismo soviético. Uma pele
metálica que dá um efeito de leve translucidez contraposto à opacidade da
fachada norte, reveste estes dois elementos tornando comum o que, na origem,
era discordante. Desse modo, o edifício-sede se encontra novamente liberado e
fazendo valer uma de suas maiores qualidades: o purismo de sua forma e a
nitidez de suas proporções.
Nesse jogo de separar e conectar,
o projeto expõe sua inteligência. Além de facultar acesso alternativo aos
pavimentos, a torre também se conecta ao terraço. Essa ligação encontra
cumplicidade no interior do instituto, no 3º pavimento reservado aos órgãos
diretores, onde ocorre a explosão da caixa pelo corte na laje de cobertura para
nesse vão alocar o acesso ao terraço.
Como contraponto à abertura para
os céus, impôs-se igualmente a liberação do pilotis, ocupado pelos vestiários.
Essa interrupção cortava a fluência espacial e aumentava a sensação de barreira
entre frente e fundos. Com a abertura do térreo, o paisagismo ganhou particular
relevância como desenho da superfície a incentivar a continuidade espacial.
Outra alteração, que caminha no mesmo sentido – a liberação espacial – foi a
proposta de deslocar para esquerda a caixa de elevadores (ver a planta
original) para fora do eixo do volume vertical para assim facultar a vista para
o lado oposto.
Esse duplo movimento - liberar o
solo e ocupar o teto - sintetiza as operações decisivas da proposta.
A continuidade da superfície converte o Instituto num efetivo problema
urbanístico, na medida em que seu uso atual inclui um complexo vasto e variado
de diversas unidades. A vista do terraço expõe de modo gritante essa falta de
planejamento, mas por outro lado descortinam visadas inéditas da praça à frente
e das montanhas ao fundo, fazendo ver não só a forma urbana, como também a
constituição paisagística do entorno. A superfície que continua torna o lote um
solo comum, portanto responsabilidade comum.
Cerca de dois anos e meio antes
da decisão de reformular o edifício-sede, a direção do Instituto tomou a
iniciativa de construir um espaço cultural no local em que funcionava o
almoxarifado. Este cumpriria a função de conectar a instituição com as comunidades
do entorno imediato e com a própria cidade de Niterói. Hoje, um espaço de
ciência não mais se assemelha a um monastério recluso, ao contrário, se abre e
busca interação com a comunidade.
O Espaço Vital Brazil de Ciência
e Cultura, projeto de Pedro Rivera e Pedro Évora, do RUA, é um anexo coligado à
edificação de Vital Brazil (para detalhes do projeto ver http://www.rualab.com/portfolio/60,146).
Um anexo oferece vantagens de certa independência formal em relação ao original,
contudo os autores definiram como ponto de partida básico o protagonismo da
edificação modernista. O programa inclui auditório, sala de exposição e
biblioteca.
O primeiro ato, como no projeto
do FÁBRICA, foi resgatar a ideia do pilotis aberto, liberando-o do fechamento
que ocorreu ao longo dos anos, na ala à direita do acesso principal, para aí se estabelecer como eixo de acesso ao
bloco do auditório e da sala de exposição. Entre as duas edificações forma-se
um espaço de transição transparente, no qual se localiza o saguão de acesso e a
biblioteca, além do ofidário.
O projeto do anexo começa com uma
curva tangente, modo elegante de estabelecer um contato, mas também de
estabelecer uma diferença. Ao invés de prolongar os eixos existentes,
procedimento típico da composição modernista, o eixo do auditório encontra-se
ligeiramente deslocado do eixo do volume de acesso. Além disso, em termos
compositivos, a articulação proposta dá acento à curvas, diagonais e retas. Ao
purismo do original, a opção pelo híbrido e pelo destoante, que não se
restringe à planta, mas incide sobre planos de fechamento, na fenestração, na
cobertura e no teto ondulante do auditório.
Fosse no período modernista, o
projeto do anexo provavelmente seguiria o eixo do volume transversal, alocando
na extremidade o auditório em forma de cunha. Os projetos brasileiros do
período de 1940-60 exibiam sua preferência pela proliferação de episódios
plásticos ao longo de um eixo linear. É fácil perceber essa estratégia tomando
como exemplo o plano de urbanização da esplanada de Santo Antonio, de Affonso
Eduardo Reidy.
Affonso Eduardo Reidy - urbanização da esplanada de Santo Antonio 1948 |
Aqui, a configuração volumétrica
proposta oscila entre a discrição e a contundência. A contenção das formas
denota um sentido de respeito ao patrimônio moderno; o porte e o intencional
desvio da ortogonalidade, assim como o engaste abrupto entre o volume do
auditório e a caixa baixa, assinalam a afirmação da diferença. Um volume
incrustado no outro, diferenciados pelas proporções e pelo tratamento das
superfícies, por um lado é típica estratégia modernista, por outro, a estranha
congruência de linhas , formas e volumes assinala um gosto pelo impuro e por
certa intencional deselegância. Para atenuar o impacto do volume maciço do
auditório, cuja altura é sempre considerável, os arquitetos optaram por
recobri-lo com teto verde e assim
estabelecer a conexão visual com a paisagem montanhosa ao fundo.
O programa de um espaço cultura
sempre implica em áreas amplas e dilatadas. De fato, o projeto se espalha, mas
é contido pela rua limítrofe e pela via interna que contorna o anexo. A
horizontalidade predomina, justamente para não competir com o edifício
existente.
Não obstante, o respeito denotado
pelo projeto, não há como não pressentir o incômodo de projetar um anexo quando,
no polo oposto, outro – a Farmácia
Popular – tenha sido implantado de modo tão desastrado. Todo cuidado
demonstrado encontrava um item de contraste na volumetria canhestra e banal do
anexo na outra extremidade. O dilema projetual necessariamente incidia sobre
este negativo inescapável: melhorar algo enquanto tamanho acidente se mantém
invulnerável. É óbvio o desconcertante paradoxo, o inconformismo de aceitar
essa situação, quando o que se impunha seria uma ação mais abrangente e
expansiva, que incluísse todo campus. A demanda por mais uma intervenção
pontual só reafirma a lógica irregular que conduziu o “programa” de expansão da
Instituição.
Com a decisão da direção do
Instituto Vital Brazil de reformar o edifício-sede, encomendado aos arquitetos
da Fábrica, os projetos de algum modo se complementaram. Solução de acesso
comum pode ser mais bem compatibilizada, e a partir da decisão comum de abrir o
pilotis, o paisagismo pode também contribuir para dar maior unidade às
intervenções.
É preciso, contudo, chamar a
atenção para um ponto: os projetos ainda são situações de projeto. Mesmo que o
projeto do RUA (em comparação com o estágio do FÁBRICA) esteja na fase do
executivo, ainda se confrontam com o imprevisto, com as mudanças de ênfase ou
indefinições que forçam a ajustes, correções, adaptações. Itens do programa
sofrem alterações, avaliações estruturais determinam a viabilidade ou não de
certas intenções, ampliações ou restrições da abrangência original do projeto
impõe a revisão constante das premissas e estratégias até então seguidas. E
isso sem considerar que na fase de construção um sem número de circunstâncias
podem surgir e interferir naquilo que foi previsto.
Mas, justamente nessa fase que, a
meu ver, certos aspectos do projeto se manifestam. Nessas situações ainda não
totalmente completadas e resolvidas, ainda em fase de estudar soluções, em que
as dúvidas, os inconformismos, as alternativas ainda são um risco, é que o
projeto revela toda sua riqueza e complexidade. No geral, ao final do processo
de projetação, quando tais indefinições, em tese, já chegaram a um termo comum,
vislumbramos uma representação sintética que, por sua própria natureza, oculta
todo o campo de possibilidades e incertezas enfrentadas durante o período
analítico do projeto.
Nesse intervalo, o projetista se
vê e se coloca em questão, na medida em que expõe suas fragilidades. Aí, também
o crítico aprende a ver o que se coloca durante o árduo processo de projeto e
que as decisões tomadas são angustiantes e conflitadas. Aprende, em igual
medida, a relativizar as premissas idealistas e estéticas, que ele toma como as
mais importantes, mas que ao longo do dilema do projeto, são partes a serem
ponderadas, mas não o corpo completo a ser formado.
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