ANTONIO MANUEL NO MAM-Rj
A volta de Antonio Manuel ao
MAM-Rj é fato digno de nota. Desde 1973, quando teve cancelada sua exposição
por causa da polêmica obra “Bode”, o artista não tinha uma individual. Fora lá,
três anos antes, que apresentou a célebre performance “O Corpo é a Obra” no
Salão Nacional de Arte Moderna, após ter a obra sido rejeitada pelo júri[1].
Não se trata exatamente de um
ajuste de contas histórico que o Museu estaria prestando, não seria o caso, nem
muito menos seria necessário. Mesmo porque muito de sua formação se dera
naqueles espaços, mais precisamente, naquele que poderia ser considerado um
espaço neoconcreto por excelência.
A individual de Antonio Manuel não é uma
homenagem retrospectiva à um artista
consagrado. Apesar de algumas obras serem de períodos anteriores, a maior parte
dos trabalhos é das décadas de 1990 e sobretudo dos anos 2000, ou seja, parte
da produção recente do artista.
No entanto, algumas questões, a
meu ver, persistem na obra de Antonio Manuel. O debate com a tradição construtiva percorre grande parte
dos trabalhos. É como se Antonio Manuel tivesse identificado nos dilemas e
impasses do projeto construtivo o foco de nosso recorrente dilema histórico: a
tensão entre idealidade e empiria.
O idealismo franco e voluntarista
dos movimentos construtivos no Brasil (do concretismo à arquitetura moderna) na
sua afirmação de uma arte que se integre à ordem social, a crença na “Vontade
de Ordem” como vetor projetivo de nosso destino histórico, a energia lírica e
subjetiva que a arte deflagra pela intensificação dos processos de participação
e sensibilização, enfim, muito de tudo isso Antonio Manuel parece ter herdado
do projeto construtivo brasileiro. Artistas da vertente mais propositiva do
neoconcretismo, contudo, foram fundamentais para que o artista escapasse do
dogmatismo construvista e se atirasse na via do experimentalismo lúdico e por
vezes iconoclasta: Hélio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark.
Mas a liberação que a experiência
neoconcreta ensejou logo se chocou frontalmente com o ambiente avesso e
repressor instaurado pelo regime militar. Ronaldo Brito[2]
apontou o paradoxo: justamente no momento do “exercício experimental da
liberdade” ao qual Antonio Manuel adere de imediato, o espaço da liberdade se
fecha no Brasil.
No entanto, a empiria para o
artista nunca se reduziu apenas à dimensão política. No final da década de
1960, momento em que o artista aparecia no cenário artístico, era também o
momento em que o Brasil começava a entrar no mundo da cultura de massa, da comunicação
por imagens impressas e do consumo de mercadorias.
X
Até que a imagem desapareça - 2013 |
A razão da contemporaneidade de
Antonio Manuel se deve, a meu ver, por ter colocado em xeque o idealismo do
projeto construtivo, assumindo a estratégia do desvio produtivo que suscita o
paradoxo crítico. O artista sabe perfeitamente que essa integração entre arte e
vida estava implícita no construtivismo moderno, e coube a Bauhaus o passo
derradeiro. E de fato, o projeto construtivo nesse sentido conseguiu se impor
na programação visual, na arquitetura, no design, no urbanismo, no
planejamento, enfim.
Porém, visceralmente mergulhado
nas condições problemáticas do momento histórico local, Antonio Manuel não pode
como seus antecedentes, nutrir crença na força exemplar da forma construtiva,
cuja evidência lógica e formal seria capaz de estimular uma percepção
inteligente do mundo dos fatos empíricos. A empiria não se rende a arranjos
ideais, ao contrário é fator de resistência, opacidade e obscurantismo. Mas é
também a dimensão da vitalidade, campo de liberação de energias líricas e de
movimentação lúdica.
Assim, depois de ter conseguido
impor seus padrões de ordem no mundo da vida, a forma construtiva se viu
forçada a conviver com diferenças incontornáveis. A plena identificação entre
significado e significante proposta pela ordem neoplástica logo se viu
fraturada, senão instrumentalizada, como o artista percebeu na página de
jornal, origem de um de seus mais contundentes trabalhos – os “Flans” – cujo
grid neoplástico serve para organizar as mais desconexas manchetes e conteúdos.
Assim, a geometria cristalina construtiva serve para dar legibilidade à
violência brutal dos fatos urbanos e da ordem social e política. Ordem ideal e
força bruta da realidade se comprimem, trocam golpes, tocam-se, maculam uma a
superfície da outra e por vezes quase não percebemos que poderiam ser duas
coisas distintas, senão uma e paradoxal entidade.
Antonio Manuel pode ser descrito
como um artista rebelde na era da comunicação de massas. Daí o interesse inicial
pelo jornal, com sua comunicabilidade instantânea, ligeira, movente entre o
relevante e o circunstancial. Mas o interesse também recai sobre o seu processo
de produção, e na conjunção entre o impressor e designer, a cadeia de produção
se mostra. Manchetes, manchas, imagens, diagramações, matriz, prensas, papel,
enfim, foram durante o início dos anos 1970
a matéria prima dos Flans. Na
exposição do MAM, o tema retorna sob forma negativa na inédita “Até que a
imagem desapareça” (2013) ao mostrar o apagamento da imagem impressa. Não há
como não associar tal procedimento com o tema da memória e esquecimento, uma
das questões mais complexas e problemáticas da era das imagens digitais e do
arquivo inesgotável. A quem cabe o controle; quem decide o conteúdo das
informações a serem veiculadas; os fatos registrados; os que devem ser, por
qualquer razão ou desrazão apagadas?
Nave - 2013 |
Sintonizado com todas estas
questões, “Nave” (2013) expõe o dilema.
Trata-se de uma cabine de madeira formado por quatro portas, que são vazadas
parte de cima. Vemos no interior da cabine, na parte baixa, uma placa de
acrílico sobre um monitor que exibe uma sequência de imagens – catadores
noturnos de lixo acumulado nas ruas, fotos e recortes de jornal com matérias de
violência ou protesto sendo queimadas ou sendo enfiadas por debaixo de uma
porta. Na parte de cima um saco pendurado por uma corda, cujo conteúdo não se
revela e do qual pingam gotas d’agua sobre o acrílico, embaçando as imagens
exibidas. O estatuto de verdade e
objetividade do que é divulgado pela mídia parece ser o ponto crucial da
provocação do artista. As gotas que pingam não são capazes de apagar as chamas
que consome as fotos e recorte, mas turvam a imagem veiculada. O mecanismo de
onde parte a água é escondido pelo saco que o amarra. O que as imagens parecem
mostrar é a versão da “realidade crua”, fechada dentro de 4 portas, esta realidade
abrupta, imprevisível, explosiva e violenta filtrada pela mídia (mecanismo
reiterado pelo plano redundante de acrílico sobreposto) e atenuada pela água
que goteja desse mecanismo misterioso. Seria a representação do que chamávamos
de “filtro ideológico” que tende a apaziguar a realidade? Talvez, mas estas e
as outras perguntas só se tornam mais urgentes, na medida dos acontecimentos
recentes, da massa urbana nas ruas e seus movimentos que desafiaram interpretes
e interpretações convencionais.
Há algo de explicitamente
insólito em “Nave” e “Até que a imagem desapareça”. Esses sacos suspensos, do
qual não sabemos o seu conteúdo, nos inquietam e perturbam. Alguns quadros na mostra apresentam (como veremos) um buraco na
tela, que não deixam de exalar certo humor, como uma gag visual. Tais justaposições
inexplicáveis, certas incongruências e desvios, lances sarcásticos e
provocativos são, enfim, procedimentos corriqueiros às montagens dadaístas e
surrealistas e em Antonio Manuel parecem calculadas ações que correm por dentro
a força lógica da montagem construtiva.
X
Nove colunas - 2009 |
Valores Intrínsecos - 2009 |
Frutos do Espaço - 1980/2013 |
A gramática neoplástica é base de
muitos trabalhos de Antonio Manuel: as cores primárias, o arranjo ortogonal, a
modulação geométrica. Mas a sintaxe límpida e rigorosa de Mondrian parece
sofrer golpes perturbadores, irrupções imprevistas, impactos estridentes.
Certamente a ordem de proporcionalidade cara ao neoplasticismo é a primeira a
ser contestada, como que a dizer que o ideal formal e cívico do “equilíbrio
assimétrico” parece cada vez mais distante e irrealizável nos dias atuais.
A cor azul, tão marcante na
paleta mondrianica parece desaparecer, ou mais exatamente, tornar-se
indistinta, na medida em que tem sua tonalidade ora acentuada se aproximando
com isso do cinza chumbo e do negro, ora enfraquecida se confundindo com o
cinza claro e o branco. Aquilo que era plano afirmativo se converte em
gradação. De modo similar, percebemos divisões que não se conjugam, partes que
escapam à modulação geométrica, elementos alheios ao grid de orientação. A tela
“9 colunas” (2009) é cheia de desvios
calculados que quebram a ordenação das faixas verticais em sua continuidade
articulada, perturbam o equilíbrio geométrico pré-determinado. A graça
justamente está nessa iminência de coisas a ruir por força desses elementos
intrusos. Já “Valores intrínsecos”, a
paleta é o oposto da anterior, claramente solar com domínio do amarelo e do
vermelho e uma ausência significativa do azul. Por força das cores expansivas,
a escala da tela é maior e a planaridade enfática. O grid geométrico novamente
é intrigante, com quebras de ritmos e continuidades. O segmento cinza
nitidamente é o mais deslocado do conjunto. No entanto, insólito mesmo é buraco
feito na tela, totalmente estranho à gramática do quadro. Mas quando se compreende
que a energia luminosa enfatiza a lateralidade do plano, o buraco abre a
profundidade real, dando a ver a parede que suporta o chassi, nos revelando
assim a materialidade do quadro. Contraponto dessa vazão, o pequeno ponto (na
verdade quadrado) negro levemente deslocado do centro nos atrai para a
imensidão amarela no qual está imerso. Assim, uma série de movimentos
perceptivos é deflagrada, para dentro, para os lados, para o fundo. Do mesmo
modo, as variações de escala são sentidas - amplificada, ínfima, objetual.
Sem dúvida, “Frutos no Espaço” (1980/2013)
é a obra mais pura em termos formais. Um grid incorpóreo, límpidas linhas
primárias no espaço, estrutura incólume, avessa à contaminações venosas. Devidamente posicionados contra os painéis
expositivos de fundo e o solo de pedras brancas estas estruturas de ferro
exibem-se em sua integridade tal qual plantas geométricas num jardim tropicália. No entanto, essa condição controlada e ideal
tem curta duração, pois a força do trabalho é também sua fragilidade. A grade
geométrica é firme em suas linhas mas por força da transparência, rapidamente
se confunde com o espaço ambiente. As variações de luminosidade e de movimento
do corpo no espaço fazem com que tais armações percam sua nitidez e
estabilidade, diluindo-se em meio à atmosfera fluida e aberta do salão de
exposição. Apenas por um instante, o grid ganha integridade, mas isso sob
condições muito, muito abstratas. Contudo, no instante seguinte começam a se
dissolver pela contaminação com o ambiente. Mas é exatamente nesse instante a
obra se coloca no espaço da vida.
Fantasma - 1994 |
Fantasma - 1994 |
Fica claro que a questão se
resume ao embate entre CORPO E ESPAÇO. Por um lado as obras incentivam o
contato corpóreo, por outro a oscilação perceptiva própria ao corpo em
movimento ameaça tais estruturas de desestabilização. Nesse ponto, podemos
passar para as considerações sobre as instalações propriemente ditas. Nelas o diálogo com o espaço empírico é
inerente. “Fantasma” (1994) é , sem dúvida, a mais conhecidas das instalações
de Antonio Manuel. Pendurados por tênues fios de nylon, pedaços de carvão
flutuam no espaço, em alturas variadas e em intervalos que permitem a passagem.
O convite a imiscuir-se por esse estranho labirinto é irrecusável, como também o
temor em encostar nessa matéria calcificada, efetivamente uma massa negativa
capaz de manchar nosso corpo e roupas. A espacialidade é rarefeita e ao mesmo
tempo densa, e nessa espécie de "selva impenetrável” como gosta de dizer o
artista, o corpo se contorce em movimentos cuidadosos procurando se desviar do
carvão pendurado, que ao menor toque faz oscilar a linha de nylon que o
sustenta, denunciando assim nosso desajeito, nossa desatenção e falta de
cuidado, por mais que nos esforcemos em evita-los.
Ao fundo, colado na parede há uma
fotografia de um homem encapuzado cercado por microfones da imprensa. Trata-se
de uma testemunha de um crime que não pode revelar sua identidade, um fantasma.
A instalação instaura a perturbadora experiência do desejo do imaculado e nosso
horror da maculação. Como se pudéssemos nos sentir atraídos e ao mesmo tempo
protegidos daquilo que nos ameaça, daquilo que nos é avesso.
Sucessão de Fatos - 2003 |
Aliás, o contraponto de “Fantasma”
é a instalação “Sucessão de Fatos” (2003), um telhado montado no chão, sobre o
qual encontram-se caixas circulares de fibra de vidro que contém uma série de
produtos (talco, colorau, açafrão, gergelim e páprica). Em “Fantasma” tudo
pendia do teto em alturas variadas, a referência era o eixo vertical do corpo;
“Sucessão de Fatos” a referência é o chão, sempre estamos olhando para baixo e
o cuidado agora é com o inusitado de caminhar por sobre o telhado, mesmo
sabendo se tratar de um “revestimento” do piso. A sensação de que as telhas
possam quebrar é iminente, mas o convite ao caminhar é irresistível. Não há
como não comentar o aspecto insólito da situação e os estranhos objetos
pousados e talvez o mais enigmático seja o tanque de água com balde suspenso,
de onde pingam gotas. Podemos especular um conjunto de referências que o
trabalho suscita, desde o aspecto árido e solar das lajes de favela e dos
terraços mediterrâneos, passando por homenagens ao amigo Hélio Oiticica com
seus “Bólides”, até pigmentos da prática da pintura e seu elemento de diluição.
Antonio Manuel não ambiciona
criar em suas instalações um evento sensorial puro, sob condições controladas e
intensificadas para assim deflagrar uma percepção cristalina. Não parece
acreditar nessa possibilidade. O espaço real é híbrido por excelência, e não
pode decantado em substancia pura. Nesse cruzamento ininterrupto entre
subjetividade o objetividade o corpo fenomelógico não opera a “pura redução ao
fenômeno”, ao contrário, se vê constantemente assolado e atravessado pela
materialidade social e simbólica da realidade. Ao puramente sensorial se justapõe
o mental, as projeções do imaginário, as convenções e hábitos arraigados, a
física opressiva que administra o cotidiano, em suma, toda uma série de forças
e fluxos que nos atravessam. Por isso, o próprio dos trabalhos é muito mais o
movimento constante entre o concentrado e o dispersivo, o nítido e o difuso, o
voluntarismo e a anestesia, o impulso e a passividade, o padronizado e o
aleatório, em suma, movimentos contrapostos de determinação e indeterminação.
Somente um artista intrinsecamente metropolitano poderia articular tais
demandas entre uma percepção lúcida e uma percepção distraída, inerente à
experiência urbana do choque pela estimulação ininterrupta e pelo deslocamento
vertiginoso e obsessivo. Mas também a deriva pode ser passeio lúdico e
desinteressado, legítima tradição moderna de crítica ao utilitarismo
produtivista da modernidade.
Antes de passar para, na minha
opinião o trabalho mais feliz da mostra, queria tecer algumas considerações
sobre a montagem. A estrutura é clara: no grande salão de exposições núcleos de
instalações estruturam o espaço, alternando-se com as pinturas. Nessa montagem,
as instalações a meu ver tiveram muito de sua força reduzida, justamente por
perderem aquilo que lhes daria sentido: a tensão com o espaço expositivo.
Alocados num salão genérico e unitário, módulos foram construídos para “receberem”
os trabalhos. “Fantasma” teve que se fechar e por isso ganhou um caráter mais
sombrio e introspectivo, “Sucessão de Fatos” só funciona se esquecermos o
imenso pé-direito e imaginarmos que os painéis expositivos são efetivamente muros,
caso contrário a dialética entre piso, teto e parede se perde. “Frutos no
Espaço” ficou apequenado na extremidade e num canto do salão, prejudicando a
fluidez necessária à sua apreensão.
Ocupações/Descobrimentos - 1998/2013 |
A única obra que, de fato, se
instalou foi “Ocupações/Descobrimentos” (1998/2013). Colocado logo na entrada
esses muros atravessam transversalmente o espaço, interrompendo a visão da
profundidade da sala e impondo sua frontalidade plana. Á frente um extenso e
sinuoso plano amarelo com um buraco no meio que deixa ver outros planos
recuados, um vermelho e o outro de tijolo, igualmente perfurados. Os buracos perfazem
uma perspectiva cônica e fazem nosso olhar atravessar o espaço, não obviamente
ao modo da caixa cênica renascentista, mas ao modo planar de cifrar a
profundidade na superfície. Os muros, ao
contrário, impõem um desvio para os lados, de onde acompanhamos os movimentos
de superfície. Ao longo desse deslocamento percebemos tratar-se de 3 planos, um
sinuoso e solto e dois em ângulo, conectados pelo vértice. O primeiro muro é
rebocado dos dois lados e pintado de amarelo. O subsequente é vermelho de um
lado e branco do outro, o terceiro não recebe reboco na face interna ao ângulo,
por isso deixa a mostra os tijolos e a massa de seu assentamento, mas na outra
recebe o mesmo reboco e pintura amarela.
A materialidade tosca do tijolo,
do cimento, do reboco pesa e reage ao concreto aparente do Museu, a distensão
horizontal corta o salão equilibrando-se ao elevado pé-direito que dá feições
monumentais ao espaço, o amarelo irradiante que o recobre expande sua luminosidade
fazendo ressoar sua presença por todo o salão.
O percurso por entre os muros faz
revelar as várias facetas desses planos, sua articulação formal e estrutural,
sua constituição material (inclusive seu coeficiente de resistência e
estabilidade denunciado pelos golpes de marreta que literalmente abriram os
buracos no muro), enfim, seus vários modos do comportamento do ser e estar no
espaço. Fiel à lição neoconcreta, não há verso ou reverso nesses muros, apenas
a superfícies em continuidade. Mas agora estas se permitiram atravessá-las por
dentro, numa irresistível ação iconoclasta: quebrar/atravessar muros. Nunca o
plano construtivo foi tão concreto, tão próximo à construção comum,
verdadeiramente banal.