segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014



ANTONIO MANUEL NO MAM-Rj

A volta de Antonio Manuel ao MAM-Rj é fato digno de nota. Desde 1973, quando teve cancelada sua exposição por causa da polêmica obra “Bode”, o artista não tinha uma individual. Fora lá, três anos antes, que apresentou a célebre performance “O Corpo é a Obra” no Salão Nacional de Arte Moderna, após ter a obra sido rejeitada pelo júri[1].
Não se trata exatamente de um ajuste de contas histórico que o Museu estaria prestando, não seria o caso, nem muito menos seria necessário. Mesmo porque muito de sua formação se dera naqueles espaços, mais precisamente, naquele que poderia ser considerado um espaço neoconcreto por excelência.
 A individual de Antonio Manuel não é uma homenagem retrospectiva  à um artista consagrado. Apesar de algumas obras serem de períodos anteriores, a maior parte dos trabalhos é das décadas de 1990 e sobretudo dos anos 2000, ou seja, parte da produção recente do artista.
No entanto, algumas questões, a meu ver, persistem na obra de Antonio Manuel. O debate com  a tradição construtiva percorre grande parte dos trabalhos. É como se Antonio Manuel tivesse identificado nos dilemas e impasses do projeto construtivo o foco de nosso recorrente dilema histórico: a tensão entre idealidade e empiria.
O idealismo franco e voluntarista dos movimentos construtivos no Brasil (do concretismo à arquitetura moderna) na sua afirmação de uma arte que se integre à ordem social, a crença na “Vontade de Ordem” como vetor projetivo de nosso destino histórico, a energia lírica e subjetiva que a arte deflagra pela intensificação dos processos de participação e sensibilização, enfim, muito de tudo isso Antonio Manuel parece ter herdado do projeto construtivo brasileiro. Artistas da vertente mais propositiva do neoconcretismo, contudo, foram fundamentais para que o artista escapasse do dogmatismo construvista e se atirasse na via do experimentalismo lúdico e por vezes iconoclasta: Hélio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark.
Mas a liberação que a experiência neoconcreta ensejou logo se chocou frontalmente com o ambiente avesso e repressor instaurado pelo regime militar. Ronaldo Brito[2] apontou o paradoxo: justamente no momento do “exercício experimental da liberdade” ao qual Antonio Manuel adere de imediato, o espaço da liberdade se fecha no Brasil.
No entanto, a empiria para o artista nunca se reduziu apenas à dimensão política. No final da década de 1960, momento em que o artista aparecia no cenário artístico, era também o momento em que o Brasil começava a entrar no mundo da cultura de massa, da comunicação por imagens impressas e do consumo de mercadorias.

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Até que a imagem desapareça - 2013






A razão da contemporaneidade de Antonio Manuel se deve, a meu ver, por ter colocado em xeque o idealismo do projeto construtivo, assumindo a estratégia do desvio produtivo que suscita o paradoxo crítico. O artista sabe perfeitamente que essa integração entre arte e vida estava implícita no construtivismo moderno, e coube a Bauhaus o passo derradeiro. E de fato, o projeto construtivo nesse sentido conseguiu se impor na programação visual, na arquitetura, no design, no urbanismo, no planejamento, enfim.
Porém, visceralmente mergulhado nas condições problemáticas do momento histórico local, Antonio Manuel não pode como seus antecedentes, nutrir crença na força exemplar da forma construtiva, cuja evidência lógica e formal seria capaz de estimular uma percepção inteligente do mundo dos fatos empíricos. A empiria não se rende a arranjos ideais, ao contrário é fator de resistência, opacidade e obscurantismo. Mas é também a dimensão da vitalidade, campo de liberação de energias líricas e de movimentação lúdica.
Assim, depois de ter conseguido impor seus padrões de ordem no mundo da vida, a forma construtiva se viu forçada a conviver com diferenças incontornáveis. A plena identificação entre significado e significante proposta pela ordem neoplástica logo se viu fraturada, senão instrumentalizada, como o artista percebeu na página de jornal, origem de um de seus mais contundentes trabalhos – os “Flans” – cujo grid neoplástico serve para organizar as mais desconexas manchetes e conteúdos. Assim, a geometria cristalina construtiva serve para dar legibilidade à violência brutal dos fatos urbanos e da ordem social e política. Ordem ideal e força bruta da realidade se comprimem, trocam golpes, tocam-se, maculam uma a superfície da outra e por vezes quase não percebemos que poderiam ser duas coisas distintas, senão uma e paradoxal entidade.
Antonio Manuel pode ser descrito como um artista rebelde na era da comunicação de massas. Daí o interesse inicial pelo jornal, com sua comunicabilidade instantânea, ligeira, movente entre o relevante e o circunstancial. Mas o interesse também recai sobre o seu processo de produção, e na conjunção entre o impressor e designer, a cadeia de produção se mostra. Manchetes, manchas, imagens, diagramações, matriz, prensas, papel, enfim, foram durante o início dos anos 1970  a matéria prima dos Flans. Na exposição do MAM, o tema retorna sob forma negativa na inédita “Até que a imagem desapareça” (2013) ao mostrar o apagamento da imagem impressa. Não há como não associar tal procedimento com o tema da memória e esquecimento, uma das questões mais complexas e problemáticas da era das imagens digitais e do arquivo inesgotável. A quem cabe o controle; quem decide o conteúdo das informações a serem veiculadas; os fatos registrados; os que devem ser, por qualquer razão ou desrazão apagadas?

Nave - 2013






Sintonizado com todas estas questões, “Nave” (2013)  expõe o dilema. Trata-se de uma cabine de madeira formado por quatro portas, que são vazadas parte de cima. Vemos no interior da cabine, na parte baixa, uma placa de acrílico sobre um monitor que exibe uma sequência de imagens – catadores noturnos de lixo acumulado nas ruas, fotos e recortes de jornal com matérias de violência ou protesto sendo queimadas ou sendo enfiadas por debaixo de uma porta. Na parte de cima um saco pendurado por uma corda, cujo conteúdo não se revela e do qual pingam gotas d’agua sobre o acrílico, embaçando as imagens exibidas.  O estatuto de verdade e objetividade do que é divulgado pela mídia parece ser o ponto crucial da provocação do artista. As gotas que pingam não são capazes de apagar as chamas que consome as fotos e recorte, mas turvam a imagem veiculada. O mecanismo de onde parte a água é escondido pelo saco que o amarra. O que as imagens parecem mostrar é a versão da “realidade crua”, fechada dentro de 4 portas, esta realidade abrupta, imprevisível, explosiva e violenta filtrada pela mídia (mecanismo reiterado pelo plano redundante de acrílico sobreposto) e atenuada pela água que goteja desse mecanismo misterioso. Seria a representação do que chamávamos de “filtro ideológico” que tende a apaziguar a realidade? Talvez, mas estas e as outras perguntas só se tornam mais urgentes, na medida dos acontecimentos recentes, da massa urbana nas ruas e seus movimentos que desafiaram interpretes e interpretações convencionais.
Há algo de explicitamente insólito em “Nave” e “Até que a imagem desapareça”. Esses sacos suspensos, do qual não sabemos o seu conteúdo, nos inquietam e perturbam. Alguns quadros na mostra apresentam (como veremos) um buraco na tela, que não deixam de exalar certo humor, como uma gag visual. Tais justaposições inexplicáveis, certas incongruências e desvios, lances sarcásticos e provocativos são, enfim, procedimentos corriqueiros às montagens dadaístas e surrealistas e em Antonio Manuel parecem calculadas ações que correm por dentro a força lógica da montagem construtiva.

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Nove colunas - 2009

Valores Intrínsecos - 2009

Frutos do Espaço - 1980/2013






A gramática neoplástica é base de muitos trabalhos de Antonio Manuel: as cores primárias, o arranjo ortogonal, a modulação geométrica. Mas a sintaxe límpida e rigorosa de Mondrian parece sofrer golpes perturbadores, irrupções imprevistas, impactos estridentes. Certamente a ordem de proporcionalidade cara ao neoplasticismo é a primeira a ser contestada, como que a dizer que o ideal formal e cívico do “equilíbrio assimétrico” parece cada vez mais distante e irrealizável nos dias atuais.
A cor azul, tão marcante na paleta mondrianica parece desaparecer, ou mais exatamente, tornar-se indistinta, na medida em que tem sua tonalidade ora acentuada se aproximando com isso do cinza chumbo e do negro, ora enfraquecida se confundindo com o cinza claro e o branco. Aquilo que era plano afirmativo se converte em gradação. De modo similar, percebemos divisões que não se conjugam, partes que escapam à modulação geométrica, elementos alheios ao grid de orientação. A tela “9 colunas” (2009)  é cheia de desvios calculados que quebram a ordenação das faixas verticais em sua continuidade articulada, perturbam o equilíbrio geométrico pré-determinado. A graça justamente está nessa iminência de coisas a ruir por força desses elementos intrusos.  Já “Valores intrínsecos”, a paleta é o oposto da anterior, claramente solar com domínio do amarelo e do vermelho e uma ausência significativa do azul. Por força das cores expansivas, a escala da tela é maior e a planaridade enfática. O grid geométrico novamente é intrigante, com quebras de ritmos e continuidades. O segmento cinza nitidamente é o mais deslocado do conjunto. No entanto, insólito mesmo é buraco feito na tela, totalmente estranho à gramática do quadro. Mas quando se compreende que a energia luminosa enfatiza a lateralidade do plano, o buraco abre a profundidade real, dando a ver a parede que suporta o chassi, nos revelando assim a materialidade do quadro. Contraponto dessa vazão, o pequeno ponto (na verdade quadrado) negro levemente deslocado do centro nos atrai para a imensidão amarela no qual está imerso. Assim, uma série de movimentos perceptivos é deflagrada, para dentro, para os lados, para o fundo. Do mesmo modo, as variações de escala são sentidas - amplificada, ínfima, objetual.
Sem dúvida, “Frutos no Espaço” (1980/2013) é a obra mais pura em termos formais. Um grid incorpóreo, límpidas linhas primárias no espaço, estrutura incólume, avessa à contaminações venosas.  Devidamente posicionados contra os painéis expositivos de fundo e o solo de pedras brancas estas estruturas de ferro exibem-se em sua integridade tal qual plantas geométricas num jardim tropicália.  No entanto, essa condição controlada e ideal tem curta duração, pois a força do trabalho é também sua fragilidade. A grade geométrica é firme em suas linhas mas por força da transparência, rapidamente se confunde com o espaço ambiente. As variações de luminosidade e de movimento do corpo no espaço fazem com que tais armações percam sua nitidez e estabilidade, diluindo-se em meio à atmosfera fluida e aberta do salão de exposição. Apenas por um instante, o grid ganha integridade, mas isso sob condições muito, muito abstratas. Contudo, no instante seguinte começam a se dissolver pela contaminação com o ambiente. Mas é exatamente nesse instante a obra se coloca no espaço da vida.

Fantasma - 1994

Fantasma - 1994




Fica claro que a questão se resume ao embate entre CORPO E ESPAÇO. Por um lado as obras incentivam o contato corpóreo, por outro a oscilação perceptiva própria ao corpo em movimento ameaça tais estruturas de desestabilização. Nesse ponto, podemos passar para as considerações sobre as instalações propriemente ditas.  Nelas o diálogo com o espaço empírico é inerente. “Fantasma” (1994) é , sem dúvida, a mais conhecidas das instalações de Antonio Manuel. Pendurados por tênues fios de nylon, pedaços de carvão flutuam no espaço, em alturas variadas e em intervalos que permitem a passagem. O convite a imiscuir-se por esse estranho labirinto é irrecusável, como também o temor em encostar nessa matéria calcificada, efetivamente uma massa negativa capaz de manchar nosso corpo e roupas. A espacialidade é rarefeita e ao mesmo tempo densa, e nessa espécie de "selva impenetrável” como gosta de dizer o artista, o corpo se contorce em movimentos cuidadosos procurando se desviar do carvão pendurado, que ao menor toque faz oscilar a linha de nylon que o sustenta, denunciando assim nosso desajeito, nossa desatenção e falta de cuidado, por mais que nos esforcemos em evita-los.
Ao fundo, colado na parede há uma fotografia de um homem encapuzado cercado por microfones da imprensa. Trata-se de uma testemunha de um crime que não pode revelar sua identidade, um fantasma. A instalação instaura a perturbadora experiência do desejo do imaculado e nosso horror da maculação. Como se pudéssemos nos sentir atraídos e ao mesmo tempo protegidos daquilo que nos ameaça, daquilo que nos é avesso.

Sucessão de Fatos - 2003







Aliás, o contraponto de “Fantasma” é a instalação “Sucessão de Fatos” (2003), um telhado montado no chão, sobre o qual encontram-se caixas circulares de fibra de vidro que contém uma série de produtos (talco, colorau, açafrão, gergelim e páprica). Em “Fantasma” tudo pendia do teto em alturas variadas, a referência era o eixo vertical do corpo; “Sucessão de Fatos” a referência é o chão, sempre estamos olhando para baixo e o cuidado agora é com o inusitado de caminhar por sobre o telhado, mesmo sabendo se tratar de um “revestimento” do piso. A sensação de que as telhas possam quebrar é iminente, mas o convite ao caminhar é irresistível. Não há como não comentar o aspecto insólito da situação e os estranhos objetos pousados e talvez o mais enigmático seja o tanque de água com balde suspenso, de onde pingam gotas. Podemos especular um conjunto de referências que o trabalho suscita, desde o aspecto árido e solar das lajes de favela e dos terraços mediterrâneos, passando por homenagens ao amigo Hélio Oiticica com seus “Bólides”, até pigmentos da prática da pintura e seu elemento de diluição.
Antonio Manuel não ambiciona criar em suas instalações um evento sensorial puro, sob condições controladas e intensificadas para assim deflagrar uma percepção cristalina. Não parece acreditar nessa possibilidade. O espaço real é híbrido por excelência, e não pode decantado em substancia pura. Nesse cruzamento ininterrupto entre subjetividade o objetividade o corpo fenomelógico não opera a “pura redução ao fenômeno”, ao contrário, se vê constantemente assolado e atravessado pela materialidade social e simbólica da realidade. Ao puramente sensorial se justapõe o mental, as projeções do imaginário, as convenções e hábitos arraigados, a física opressiva que administra o cotidiano, em suma, toda uma série de forças e fluxos que nos atravessam. Por isso, o próprio dos trabalhos é muito mais o movimento constante entre o concentrado e o dispersivo, o nítido e o difuso, o voluntarismo e a anestesia, o impulso e a passividade, o padronizado e o aleatório, em suma, movimentos contrapostos de determinação e indeterminação. Somente um artista intrinsecamente metropolitano poderia articular tais demandas entre uma percepção lúcida e uma percepção distraída, inerente à experiência urbana do choque pela estimulação ininterrupta e pelo deslocamento vertiginoso e obsessivo. Mas também a deriva pode ser passeio lúdico e desinteressado, legítima tradição moderna de crítica ao utilitarismo produtivista da modernidade.
Antes de passar para, na minha opinião o trabalho mais feliz da mostra, queria tecer algumas considerações sobre a montagem. A estrutura é clara: no grande salão de exposições núcleos de instalações estruturam o espaço, alternando-se com as pinturas. Nessa montagem, as instalações a meu ver tiveram muito de sua força reduzida, justamente por perderem aquilo que lhes daria sentido: a tensão com o espaço expositivo. Alocados num salão genérico e unitário, módulos foram construídos para “receberem” os trabalhos. “Fantasma” teve que se fechar e por isso ganhou um caráter mais sombrio e introspectivo, “Sucessão de Fatos” só funciona se esquecermos o imenso pé-direito e imaginarmos que os painéis expositivos são efetivamente muros, caso contrário a dialética entre piso, teto e parede se perde. “Frutos no Espaço” ficou apequenado na extremidade e num canto do salão, prejudicando a fluidez necessária à sua apreensão.

Ocupações/Descobrimentos - 1998/2013











A única obra que, de fato, se instalou foi “Ocupações/Descobrimentos” (1998/2013). Colocado logo na entrada esses muros atravessam transversalmente o espaço, interrompendo a visão da profundidade da sala e impondo sua frontalidade plana. Á frente um extenso e sinuoso plano amarelo com um buraco no meio que deixa ver outros planos recuados, um vermelho e o outro de tijolo, igualmente perfurados. Os buracos perfazem uma perspectiva cônica e fazem nosso olhar atravessar o espaço, não obviamente ao modo da caixa cênica renascentista, mas ao modo planar de cifrar a profundidade na superfície.  Os muros, ao contrário, impõem um desvio para os lados, de onde acompanhamos os movimentos de superfície. Ao longo desse deslocamento percebemos tratar-se de 3 planos, um sinuoso e solto e dois em ângulo, conectados pelo vértice. O primeiro muro é rebocado dos dois lados e pintado de amarelo. O subsequente é vermelho de um lado e branco do outro, o terceiro não recebe reboco na face interna ao ângulo, por isso deixa a mostra os tijolos e a massa de seu assentamento, mas na outra recebe o mesmo reboco e pintura amarela.
A materialidade tosca do tijolo, do cimento, do reboco pesa e reage ao concreto aparente do Museu, a distensão horizontal corta o salão equilibrando-se ao elevado pé-direito que dá feições monumentais ao espaço, o amarelo irradiante que o recobre expande sua luminosidade fazendo ressoar sua presença por todo o salão.
O percurso por entre os muros faz revelar as várias facetas desses planos, sua articulação formal e estrutural, sua constituição material (inclusive seu coeficiente de resistência e estabilidade denunciado pelos golpes de marreta que literalmente abriram os buracos no muro), enfim, seus vários modos do comportamento do ser e estar no espaço. Fiel à lição neoconcreta, não há verso ou reverso nesses muros, apenas a superfícies em continuidade. Mas agora estas se permitiram atravessá-las por dentro, numa irresistível ação iconoclasta: quebrar/atravessar muros. Nunca o plano construtivo foi tão concreto, tão próximo à construção comum, verdadeiramente banal.





[1] O projeto foi apresentar como obra o próprio corpo nu. Apesar da recusa, o artista se apresentou clandestinamente na vernissage de abertura do salão.
[2] BRITO, Ronaldo. “Fluido Labirinto”, texto do catálogo Antonio Manuel. Rio de Janeiro,CAHO, 1997

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