Ministério da Educação e Saúde, 1936-1945 |
Ministério da Educação e Saúde, 1936-1945 |
ARQUITETURA MODERNA E VONTADE CONSTRUTIVA*
Levando-se em conta o processo de
afirmação das tendências construtivas no Brasil, o fenômeno da Arquitetura
Moderna surpreende pela precocidade. De fato, desde meados da década de 1930, a
arquitetura produzira obras de repercussão nacional e internacional enquanto,
as artes plásticas ainda estavam tentando assimilar as conquistas cubistas de
Picasso e Braque.
A intensidade e repercussão
pública dos edifícios modernos é fato inédito tanto que atrai, de imediato, a
atenção do Museu de Arte Moderna de Nova York - MOMA e motiva a exposição (e a
publicação do livro) “Brazil Builds”, já em 1943. Contudo, o surto da
arquitetura moderna resulta da associação problemática com o governo
autoritário do Estado Novo e tem seu centro geográfico na então capital
federal: a cidade do Rio de Janeiro.
Inútil especular se, sem tal
suporte oficial, a nova arquitetura teria ou não mesma sorte. O fato é que por
tal via, ela se realizou de maneira súbita e em grande escala, construindo
predominantemente edificações de caráter público e administrativo. O edifício
sede do Ministério da Educação e Saúde - MES (1937-43) é o marco decisivo que
projeta a arquitetura brasileira, revelando nomes como Lucio Costa, Oscar
Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira[1],
que posteriormente teriam elevado a arquitetura brasileira a um nível de
destaque jamais alcançado. Evidentemente
destacam-se ainda outros arquitetos como os irmãos Milton e Marcelo Roberto[2]
que nos mesmos anos estão realizando obras importantes na Capital. Em São
Paulo, outro centro importante, projetistas como Gregori Warchavichik, Rino
Levi, Álvaro Vital Brazil e Oswaldo
Bratke começam a construir edificações modernas, assinalando a vitalidade do
movimento no país.
Pelo lado do Estado Novo, assumir
uma arquitetura de vanguarda nas novas sedes institucionais do Governo
significava enunciá-las como símbolo da modernização do País e da efetividade
da política cultural do Estado.
Para Lucio Costa e demais jovens
arquitetos defensores do moderno, contudo, a grandeza e o mérito da nova
arquitetura seria justamente a resistência, senão franca oposição à qualquer
forma retórica, defesa intransigente da autonomia de linguagem plástica. O verdadeiro
capital simbólico da moderna arquitetura estaria, portanto, em outro plano: na
exemplaridade e racionalidade de seus próprios procedimentos, ou seja, na sua
própria realização como legítimo feito moderno. A propalada desenvoltura
plástica da arquitetura moderna no Brasil não seria mera conseqüência de uma
cultura que preza o ornamental ou o virtuosismo individualista (acusação feita
por Max Bill por ocasião de sua visita ao Brasil, em 1951), antes seria a
exemplaridade moderna ansiosa de sua própria realização.
Ciente da incipiência do ambiente
sócio-cultural no qual a moderna arquitetura se inseria, Lucio Costa, principal liderança do movimento
se interroga sobre os limites e as possibilidades do projeto moderno no Brasil.
A associação entre arte e técnica, bem como a crença na potência esclarecedora
da forma moderna, próprias às vanguardas construtivas europeias, expõem as
evidentes limitações de uma sociedade provinciana e com fortes traços
patriarcais. Lucio Costa lamenta não tanto o atraso industrial do país, mas a
rala densidade cultural e política existente.
Oscar Niemeyer - Casa do Baile/Pampulha, 1943 |
Como interpreta G. C. Argan[4],
a vanguarda arquitetônica brasileira não se colocou o problema funcionalista da
busca de equilíbrio entre quantidade e qualidade, o que a levaria
inevitavelmente a confrontar problemas da habitação social, do urbanismo e do
planejamento. Apesar do crescimento econômico desigual, das cidades passarem
por um acelerado e descontrolado crescimento populacional, dos problemas
sociais se agravarem, a arquitetura moderna optou por enfatizar a dimensão
qualitativa (entenda-se formal e técnica) dos programas que atendia, uma vez
que na maioria dos casos, tratava-se de centros institucionais de ampla
visibilidade pública.
Tendo em vista que tais
realizações se davam sob o peso do atraso e da inércia, parece claro a aposta
dos jovens arquitetos modernos na qualificação cultural que a arquitetura
traria para o desenvolvimento de uma sociedade plenamente cívica e democrática.
Lucio Costa escreve a propósito do edifício do Ministério da Educação e Saúde:
O
Ministério da Educação, por sua pureza formal e pela ideia que dá do domínio da
razão sobre a inércia da matéria, contrasta fortemente com a maior parte das
edificações circunvizinhas... Além de belo, o edifício tem valor simbólico
porquanto representa a vitória das novas tendências sobre o conformismo e o
dogmatismo predominantes.[5]
É fato reconhecido a influência
dominante de Le Corbusier sobre a moderna arquitetura no Brasil. Embora tivesse
conhecimento das propostas de Gropius, Mies Van der Rohe e F. L. Wright, a
razão da escolha, segundo Lucio Costa fora a capacidade do mestre franco-suiço
de integrar em sua doutrina os aspectos sociais, técnicos e artísticos. Na
projetística de Le Corbusier problemas empíricos da construção, as demandas
programáticas, as articulações construtivas da forma, enfim, tudo que envolve o
projeto corriam paralelos, sem nexos causais predeterminados, e só se resolviam
no interior do processo projetual, expressos na dimensão do objeto sensível. Em
suma, o decisivo é o Ato Plástico, isto é, a exemplaridade está no procedimento
arquitetônico, que se afirma de modo autônomo.
Para além de seu significado
monumental ou ideológico, portanto, o MES (1936-42), é decisivo porque assinala
uma fundamental mudança de compreensão do problema da linguagem na arquitetura. A questão fora objeto de longa meditação por parte
de Lucio Costa, como se vê em um de seus textos fundamentais “Razões da Nova
Arquitetura” (1934). Diz respeito ao debate sobre os “5 pontos para uma nova
arquitetura” formulados por Le Corbusier em 1927, e consolidados no volume do
“Precisões” de 1930, logo após a sua primeira viagem à América do Sul, em 1929.
As considerações sobre a “ossatura independente” contidas no texto “Razões” são
precisas e demonstram uma compreensão aguda das consequências linguísticas e
estéticas: “Parede e suporte representam hoje, portanto, coisas diversas; duas
funções nítidas, inconfundíveis... permitindo outro rendimento ao volume
construído”[6].
Lucio Costa reconhece nessa disjunção o segredo da nova arquitetura pela
liberdade que confere ao arranjo da planta e da fachada.
Contudo, compreensão teórica não
significa controle consciente da linguagem moderna na prancheta. Como se viu, o
caso do projeto do MES é revelador, pois a equipe brasileira embora
compreendesse os princípios corbusierianos, os tomavam como regra literal,
portanto restritiva, não como princípio de liberdade. Os “5 pontos” são, de
fato e de direito, uma das únicas elaborações lingüísticas da teoria da
arquitetura moderna, que procura dar conta das novas possibilidades sintáticas
do vocabulário abstrato moderno. Longe de estabelecer um alinhamento causal (o
que poderia resultar numa academicização precoce e, portanto, num execrável
“estilo moderno”), Le Corbusier demonstra que os novos princípios são
concebidos como um “livre jogo”, um debate que deve necessariamente se resolver
no campo de batalha que é o ato projetivo. A equação dos “5 pontos” se conjuga
como um jogo de diferenças[7],
no qual nenhum dos elementos encontra significado ou posição fixa.
E Le Corbusier surpreendia ainda
mais ao demonstrar que cada um dos princípios poderia se desdobrar em tantos
outros. Assim, o corolário da planta-livre (ou da estrutura-independente, dá no
mesmo) é a promedade architeturale. Da mesma forma, da
preocupação com a insolação excessiva, o brise-soleil se converte verdadeiro
mecanismo plástico-funcional dinamizador da fachada livre. A percepção dessa
disponibilidade é crucial, e autoriza Lucio Costa a elaborar no projeto do
edifício do Parque Guinle (1948) similaridades lingüísticas entre a planta
moderna e a construção colonial; permite ainda a Oscar Niemeyer expandir o
plano livre liberando-o do confinamento da secção regular, moldar a estrutura
de cobertura como perfis plásticos, desenhar pilotis escultóricos, combinar
volumes orgânicos, estratégias adotadas no conjunto da Pampulha (1942); e libera
Affonso E. Reidy para, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1953) a
exploração das articulações construtivas da estrutura-independente; incentiva os
irmãos Milton e Marcelo Roberto à livre exploração do plano das fachadas do
edifício vertical administrativo, caso do edifício Marques do Herval (1952) e do edifício Guarabira (1953).
A.E. Reidy - MAM Rio, 1953-54 |
Irmãos Roberto - Edificio Guarabira, 1953 |
A velocidade de realização da
Moderna arquitetura no Brasil surpreende a todos, num ritmo contínuo e desconcertante,
até atingir o ápice com a capital Brasília, no final da década de 1950, período
em que, em termos políticos, o país se redemocratiza. Novamente, Lucio Costa
(projeto urbanístico) e Oscar Niemeyer (sedes governamentais) protagonizam o
feito, não mais agora restrito à escala da arquitetura, mas alcançando a
dimensão do planejamento urbano. Justamente nesse momento, as tendências
construtivas se afirmam com o concretismo e neoconcretismo. Também nesse contexto,
outro surto de produção arquitetônica começa a se afirmar, agora em São Paulo,
sob a liderança de Vilanova Artigas, seguido por Paulo Mendes da Rocha, Joaquim
Guedes[8],
e outros.
Tal sintonização foi logo percebida
pela crítica, bem como as possibilidades por ela divisadas. Mario Pedrosa enxerga
a oportunidade de se colocar em debate o tema da Síntese das Artes por ocasião
do Congresso Internacional de Críticos de Arte, realizado no ano de 1959 em
Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Pedrosa partia do pressuposto de que com
Brasília, finalmente nossa experiência moderna alcançou um patamar que permitia,
pela primeira vez na história da cultura brasileira, postular a dimensão
iluminista do Plano, de se ultrapassar a utopia pelo planejamento racional, a
inércia do passado e o incerto e imprevisível presente pelo horizonte de um
futuro projetado. A união de esforços criativos coordenados pelo Plano
significa a integração da arte num projeto político cultural, o que implica a
participação da esfera mais ampla da sociedade, envolvendo artistas, Estado,
indústria e trabalhadores.
Obviamente Pedrosa não via na
nova capital a realização plena desse projeto de síntese. Antes concebia o
acontecimento “Brasília” como a ocasião para a abertura de debate público sobre
o caráter e a função das artes, tanto no que se refere às possibilidades de
entendimento mútuo entre os meios, como na relação das artes com as demais
esferas da sociedade.
Ainda que Mario Pedrosa credite a
Brasília tal condição, não houve por parte de artistas e arquitetos interação
ou mesmo união de esforços que justificasse algum projeto em comum. Não deixa de ser surpreendente de fato, que
advindo de bases semelhantes – o projeto construtivo moderno – arquitetura e as
artes não tivessem manifestado interesse em debater e integrar suas produções.
Ainda que inexista encargo ou
mobilização comum entre os dois lados, a título de provocação, vale arriscar
algumas eventuais afinidades entre a arquitetura moderna e a vanguarda
construtiva, particularmente com o neoconcretismo. Não seria, é claro, uma
afinidade de tipo negativo, advindo do fato de ambos terem sido acusados de
desvio da tradição racionalista da arte. Ao contrário, ela se daria no nível
cognitivo dos procedimentos, mais especificamente no modo de conceber e lidar
com a geometria.
Lygia Clark - Bicho |
As torções empreendidas pela
arquitetura moderna no vocabulário do racionalismo europeu denotam uma
compreensão da geometria como linha/campo de força e não como forma ideal. Pouco
importa qual estratégia, se a expansão sensível do plano ou densificação da
forma tectônica, tudo se conclui na recusa à redução da forma a puro ente
geométrico. De modo similar, as torções fenomenológicas impostas às figuras
geométricas tornam a experiência das obras neoconcretas um campo de
reversibilidades entre corpo e espírito, algo que não consente dualismos ou
dicotomias[9].
Amilcar de Castro - Chapa triângulo |
Franz Weissmann - Espaço circular em cubo virtual, 1978 |
Todo o problema consistiria em tratar figuras
geométricas como encarnações sensíveis, fazendo-as participar das condições
instáveis e instantâneas do real. O que significa repor a questão da origem da
geometria, ou nos termos de Edmund Husserl suspender fenomenologicamente a
tradição e se voltar para o ato de geometrizar – que é uma experiência, uma
vivência sempre individualizada. O que se pretende é flagrar a emergência desse
raciocínio de correlacionar coisas concretas – figuras, formas - no horizonte
móvel do espaço-tempo. Nesse processo, a percepção cumpre papel fundamental,
pois ela é a condição do mensurar distintas qualidades das coisas. E isso não
só com vistas à contemplação estética da paisagem, mas sobretudo visando à
satisfação de utilidades práticas do localizar, mover, operar, habitar. Nessa
adesão ao mundo, a ciência da geometria encontrou motivação para avanço e
aprofundamento de seus conteúdos. O contato da geometria com o mundo é o modo
autêntico de reinventá-la.
João Masao Kamita – maio de
2011
* Publicado originalmente no catálogo Europalia International, que em 2011 teve o Brasil como país convidado. O texto saiu na seção Art in Brazil 1950-2011 - p. 37-42. com curadoria de Ronaldo Brito.
[1]
Lucio Costa (1902-1998) teve participação crucial na vinda de Le Corbusier ao
Brasil, foi um dos fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional e tem obras marcantes como os edifícios do Parque Guinle (1944), os
planos urbanísticos de Brasilia (1956) e da Barra da Tijuca-Rj (1967); Oscar
Niemeyer (1909) é o mais famoso arquiteto brasileiro, filiou-se ao partido
comunista em 1957, projetou e construiu obras fundamentais como o conjunto da
Pampulha (1942), o edifício Copan (1951), a Casa das Canoas (1953), os palácios
de Brasilia (1956-1960) a sede do
Partido Comunista em Paris (1966), a editora Mondadori, na Itália (1968), e em
1998 recebeu o prêmio Pritker de arquitetura; Affonso Eduardo Reidy (1909-1964)
um dos únicos arquitetos modernistas a se dedicar ao urbanismo, foi arquiteto
da Prefeitura do Distrito Federal, na então capital Rio de Janeiro, onde
realizou obras marcantes com o conjunto residencial Pedregulho (1946), o Museu
de Arte Moderna (1954) e a urbanização(em parceria com Roberto Burle Marx) do
Parque do Flamengo (1962-1964); Jorge Moreira (1904-1992), entre suas obras
mais importantes estão as Residências Sérgio Corrêa da Costa, (1951/1957) e Antônio
Ceppas (1951/1958), mas sua realização maior é o campus da Universidade do
Brasil, na Ilha do Fundão (1949-1962).
[2]
Os irmãos Milton (1914-1953) e Marcelo (1908-1964) formaram um dos mais importantes
escritórios de arquitetura. Destacam-se pelas pesquisas tipológicas com o
edifício vertical e entre suas obras estão a Associação Brasileira de Imprensa
– ABI (1936), o Aeroporto Santos Dumont (1936) e o edifício Marques do Herval
(1953).
[3]
A equipe era formada por Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira,
Ernani Vasconcellos, Carlos Leão e Oscar Niemeyer.
[4]
ARGAN, G. C. “Arquitetura moderna no Brasil”. IN.- XAVIER, A. (org.) Depoimento
de uma geração. São Paulo, Cosac &Naify, 2003.
[5]
APUD, Argan, p. 173.
[6]
“Razões da Nova Arquitetura”. In.- Lucio Costa:
Sobre Arquitetura. Porto Alegre, uniritter, 2007.
[7]Esta definição da linguagem como
jogo de diferenças é de Ferdinand Saussure. I.A. Bois, na sua leitura
semiológica do cubismo estabelece paralelos entre as análises de Saussure e o
movimento de liberação do signo plástico que o cubismo analítico de Picasso e
Braque. Ver “A lição de Kahnweiller” (Pintura como Modelo,
Martins Fontes, 2009) e “The Semiology of Cubism” (Picaso&Braque: a
symposium, Moma, 1992).
[8]
Depois da geração de Warchavichik, cabe a Vilanova Artigas (1915-1985) o papel
de liderança do que foi chamado de “brutalismo paulista”, o que remete a
emergência de sua obra ao contexto da crise da arquitetura moderna nos anos
1960. Ênfase nos aspectos construtivos e no sentido público da arquitetura
define essa contundente obra, capaz de provocar reverberações nas obras
singulares de Paulo Mendes da Rocha (1928), Joaquim Guedes (1932-2008).
[9]
Ver a esse respeito BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo – vértice e ruptura do
projeto construtivo brasileiro. São Paulo, Cosac &Naify, 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário