terça-feira, 22 de abril de 2014

Ministério da Educação e Saúde, 1936-1945

Ministério da Educação e Saúde, 1936-1945


ARQUITETURA MODERNA E VONTADE CONSTRUTIVA*


Levando-se em conta o processo de afirmação das tendências construtivas no Brasil, o fenômeno da Arquitetura Moderna surpreende pela precocidade. De fato, desde meados da década de 1930, a arquitetura produzira obras de repercussão nacional e internacional enquanto, as artes plásticas ainda estavam tentando assimilar as conquistas cubistas de Picasso e Braque.

A intensidade e repercussão pública dos edifícios modernos é fato inédito tanto que atrai, de imediato, a atenção do Museu de Arte Moderna de Nova York - MOMA e motiva a exposição (e a publicação do livro) “Brazil Builds”, já em 1943. Contudo, o surto da arquitetura moderna resulta da associação problemática com o governo autoritário do Estado Novo e tem seu centro geográfico na então capital federal: a cidade do Rio de Janeiro.

Inútil especular se, sem tal suporte oficial, a nova arquitetura teria ou não mesma sorte. O fato é que por tal via, ela se realizou de maneira súbita e em grande escala, construindo predominantemente edificações de caráter público e administrativo. O edifício sede do Ministério da Educação e Saúde - MES (1937-43) é o marco decisivo que projeta a arquitetura brasileira, revelando nomes como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira[1], que posteriormente teriam elevado a arquitetura brasileira a um nível de destaque jamais alcançado.  Evidentemente destacam-se ainda outros arquitetos como os irmãos Milton  e Marcelo Roberto[2] que nos mesmos anos estão realizando obras importantes na Capital. Em São Paulo, outro centro importante, projetistas como Gregori Warchavichik, Rino Levi, Álvaro Vital Brazil  e Oswaldo Bratke começam a construir edificações modernas, assinalando a vitalidade do movimento no país.

É consenso em nossa historiografia ver no prédio do Ministério da Educação e Saúde – MES a gênese do projeto moderno da arquitetura no Brasil. Objeto de concurso público, em 1936, o projeto de linhas historicistas proclamado vencedor pelo júri acadêmico não foi construído. O ministro da educação Gustavo Capanema e o grupo modernista que dirigia o ministério percebem o contra-senso e sugerem a contratação do jovem arquiteto Lucio Costa para realizar um projeto em consonância com o anseio do novo. Este indica outros jovens partidários[3] da arquitetura moderna para, em conjunto, realizarem o projeto definitivo. Apesar dos esforços do grupo, eles mesmos reconhecem as insuficiências da nova proposta, e decidem contratar o arquiteto franco-suiço Le Corbusier para orientar o projeto em sua versão definitiva.

Pelo lado do Estado Novo, assumir uma arquitetura de vanguarda nas novas sedes institucionais do Governo significava enunciá-las como símbolo da modernização do País e da efetividade da política cultural do Estado.

Para Lucio Costa e demais jovens arquitetos defensores do moderno, contudo, a grandeza e o mérito da nova arquitetura seria justamente a resistência, senão franca oposição à qualquer forma retórica, defesa intransigente da autonomia de linguagem plástica. O verdadeiro capital simbólico da moderna arquitetura estaria, portanto, em outro plano: na exemplaridade e racionalidade de seus próprios procedimentos, ou seja, na sua própria realização como legítimo feito moderno. A propalada desenvoltura plástica da arquitetura moderna no Brasil não seria mera conseqüência de uma cultura que preza o ornamental ou o virtuosismo individualista (acusação feita por Max Bill por ocasião de sua visita ao Brasil, em 1951), antes seria a exemplaridade moderna ansiosa de sua própria realização.

Ciente da incipiência do ambiente sócio-cultural no qual a moderna arquitetura se inseria,  Lucio Costa, principal liderança do movimento se interroga sobre os limites e as possibilidades do projeto moderno no Brasil. A associação entre arte e técnica, bem como a crença na potência esclarecedora da forma moderna, próprias às vanguardas construtivas europeias, expõem as evidentes limitações de uma sociedade provinciana e com fortes traços patriarcais. Lucio Costa lamenta não tanto o atraso industrial do país, mas a rala densidade cultural e política existente.

Oscar Niemeyer - Casa do Baile/Pampulha, 1943


Como interpreta G. C. Argan[4], a vanguarda arquitetônica brasileira não se colocou o problema funcionalista da busca de equilíbrio entre quantidade e qualidade, o que a levaria inevitavelmente a confrontar problemas da habitação social, do urbanismo e do planejamento. Apesar do crescimento econômico desigual, das cidades passarem por um acelerado e descontrolado crescimento populacional, dos problemas sociais se agravarem, a arquitetura moderna optou por enfatizar a dimensão qualitativa (entenda-se formal e técnica) dos programas que atendia, uma vez que na maioria dos casos, tratava-se de centros institucionais de ampla visibilidade pública.

Tendo em vista que tais realizações se davam sob o peso do atraso e da inércia, parece claro a aposta dos jovens arquitetos modernos na qualificação cultural que a arquitetura traria para o desenvolvimento de uma sociedade plenamente cívica e democrática. Lucio Costa escreve a propósito do edifício do Ministério da Educação e Saúde:

O Ministério da Educação, por sua pureza formal e pela ideia que dá do domínio da razão sobre a inércia da matéria, contrasta fortemente com a maior parte das edificações circunvizinhas... Além de belo, o edifício tem valor simbólico porquanto representa a vitória das novas tendências sobre o conformismo e o dogmatismo predominantes.[5]


É fato reconhecido a influência dominante de Le Corbusier sobre a moderna arquitetura no Brasil. Embora tivesse conhecimento das propostas de Gropius, Mies Van der Rohe e F. L. Wright, a razão da escolha, segundo Lucio Costa fora a capacidade do mestre franco-suiço de integrar em sua doutrina os aspectos sociais, técnicos e artísticos. Na projetística de Le Corbusier problemas empíricos da construção, as demandas programáticas, as articulações construtivas da forma, enfim, tudo que envolve o projeto corriam paralelos, sem nexos causais predeterminados, e só se resolviam no interior do processo projetual, expressos na dimensão do objeto sensível. Em suma, o decisivo é o Ato Plástico, isto é, a exemplaridade está no procedimento arquitetônico, que se afirma de modo autônomo.

Para além de seu significado monumental ou ideológico, portanto, o MES (1936-42), é decisivo porque assinala uma fundamental mudança de compreensão do problema da linguagem na arquitetura.  A questão fora objeto de longa meditação por parte de Lucio Costa, como se vê em um de seus textos fundamentais “Razões da Nova Arquitetura” (1934). Diz respeito ao debate sobre os “5 pontos para uma nova arquitetura” formulados por Le Corbusier em 1927, e consolidados no volume do “Precisões” de 1930, logo após a sua primeira viagem à América do Sul, em 1929. As considerações sobre a “ossatura independente” contidas no texto “Razões” são precisas e demonstram uma compreensão aguda das consequências linguísticas e estéticas: “Parede e suporte representam hoje, portanto, coisas diversas; duas funções nítidas, inconfundíveis... permitindo outro rendimento ao volume construído”[6]. Lucio Costa reconhece nessa disjunção o segredo da nova arquitetura pela liberdade que confere ao arranjo da planta e da fachada.

Contudo, compreensão teórica não significa controle consciente da linguagem moderna na prancheta. Como se viu, o caso do projeto do MES é revelador, pois a equipe brasileira embora compreendesse os princípios corbusierianos, os tomavam como regra literal, portanto restritiva, não como princípio de liberdade. Os “5 pontos” são, de fato e de direito, uma das únicas elaborações lingüísticas da teoria da arquitetura moderna, que procura dar conta das novas possibilidades sintáticas do vocabulário abstrato moderno. Longe de estabelecer um alinhamento causal (o que poderia resultar numa academicização precoce e, portanto, num execrável “estilo moderno”), Le Corbusier demonstra que os novos princípios são concebidos como um “livre jogo”, um debate que deve necessariamente se resolver no campo de batalha que é o ato projetivo. A equação dos “5 pontos” se conjuga como um  jogo de diferenças[7], no qual nenhum dos elementos encontra significado ou posição fixa.

E Le Corbusier surpreendia ainda mais ao demonstrar que cada um dos princípios poderia se desdobrar em tantos outros. Assim, o corolário da planta-livre (ou da estrutura-independente, dá no mesmo) é a promedade architeturale. Da mesma forma, da preocupação com a insolação excessiva, o brise-soleil se converte verdadeiro mecanismo plástico-funcional dinamizador da fachada livre. A percepção dessa disponibilidade é crucial, e autoriza Lucio Costa a elaborar no projeto do edifício do Parque Guinle (1948) similaridades lingüísticas entre a planta moderna e a construção colonial; permite ainda a Oscar Niemeyer expandir o plano livre liberando-o do confinamento da secção regular, moldar a estrutura de cobertura como perfis plásticos, desenhar pilotis escultóricos, combinar volumes orgânicos, estratégias adotadas no conjunto da Pampulha (1942); e libera Affonso E. Reidy para, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1953) a exploração das articulações construtivas da estrutura-independente; incentiva os irmãos Milton e Marcelo Roberto à livre exploração do plano das fachadas do edifício vertical administrativo, caso do edifício Marques do Herval (1952) e do edifício Guarabira (1953).


A.E. Reidy - MAM Rio, 1953-54


Irmãos Roberto - Edificio Guarabira,  1953


A velocidade de realização da Moderna arquitetura no Brasil surpreende a todos, num ritmo contínuo e desconcertante, até atingir o ápice com a capital Brasília, no final da década de 1950, período em que, em termos políticos, o país se redemocratiza. Novamente, Lucio Costa (projeto urbanístico) e Oscar Niemeyer (sedes governamentais) protagonizam o feito, não mais agora restrito à escala da arquitetura, mas alcançando a dimensão do planejamento urbano. Justamente nesse momento, as tendências construtivas se afirmam com o concretismo e neoconcretismo. Também nesse contexto, outro surto de produção arquitetônica começa a se afirmar, agora em São Paulo, sob a liderança de Vilanova Artigas, seguido por Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes[8], e outros.

Tal sintonização foi logo percebida pela crítica, bem como as possibilidades por ela divisadas. Mario Pedrosa enxerga a oportunidade de se colocar em debate o tema da Síntese das Artes por ocasião do Congresso Internacional de Críticos de Arte, realizado no ano de 1959 em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Pedrosa partia do pressuposto de que com Brasília, finalmente nossa experiência moderna alcançou um patamar que permitia, pela primeira vez na história da cultura brasileira, postular a dimensão iluminista do Plano, de se ultrapassar a utopia pelo planejamento racional, a inércia do passado e o incerto e imprevisível presente pelo horizonte de um futuro projetado. A união de esforços criativos coordenados pelo Plano significa a integração da arte num projeto político cultural, o que implica a participação da esfera mais ampla da sociedade, envolvendo artistas, Estado, indústria e trabalhadores.

Obviamente Pedrosa não via na nova capital a realização plena desse projeto de síntese. Antes concebia o acontecimento “Brasília” como a ocasião para a abertura de debate público sobre o caráter e a função das artes, tanto no que se refere às possibilidades de entendimento mútuo entre os meios, como na relação das artes com as demais esferas da sociedade.

Ainda que Mario Pedrosa credite a Brasília tal condição, não houve por parte de artistas e arquitetos interação ou mesmo união de esforços que justificasse algum projeto em comum.  Não deixa de ser surpreendente de fato, que advindo de bases semelhantes – o projeto construtivo moderno – arquitetura e as artes não tivessem manifestado interesse em debater e integrar suas produções.

Ainda que inexista encargo ou mobilização comum entre os dois lados, a título de provocação, vale arriscar algumas eventuais afinidades entre a arquitetura moderna e a vanguarda construtiva, particularmente com o neoconcretismo. Não seria, é claro, uma afinidade de tipo negativo, advindo do fato de ambos terem sido acusados de desvio da tradição racionalista da arte. Ao contrário, ela se daria no nível cognitivo dos procedimentos, mais especificamente no modo de conceber e lidar com a geometria.

Lygia Clark - Bicho


As torções empreendidas pela arquitetura moderna no vocabulário do racionalismo europeu denotam uma compreensão da geometria como linha/campo de força e não como forma ideal. Pouco importa qual estratégia, se a expansão sensível do plano ou densificação da forma tectônica, tudo se conclui na recusa à redução da forma a puro ente geométrico. De modo similar, as torções fenomenológicas impostas às figuras geométricas tornam a experiência das obras neoconcretas um campo de reversibilidades entre corpo e espírito, algo que não consente dualismos ou dicotomias[9].

Amilcar de Castro - Chapa triângulo

Franz Weissmann - Espaço circular em cubo virtual, 1978


 Todo o problema consistiria em tratar figuras geométricas como encarnações sensíveis, fazendo-as participar das condições instáveis e instantâneas do real. O que significa repor a questão da origem da geometria, ou nos termos de Edmund Husserl suspender fenomenologicamente a tradição e se voltar para o ato de geometrizar – que é uma experiência, uma vivência sempre individualizada. O que se pretende é flagrar a emergência desse raciocínio de correlacionar coisas concretas – figuras, formas - no horizonte móvel do espaço-tempo. Nesse processo, a percepção cumpre papel fundamental, pois ela é a condição do mensurar distintas qualidades das coisas. E isso não só com vistas à contemplação estética da paisagem, mas sobretudo visando à satisfação de utilidades práticas do localizar, mover, operar, habitar. Nessa adesão ao mundo, a ciência da geometria encontrou motivação para avanço e aprofundamento de seus conteúdos. O contato da geometria com o mundo é o modo autêntico de reinventá-la.

João Masao Kamita – maio de 2011




* Publicado originalmente no catálogo  Europalia International, que em 2011 teve o Brasil como país convidado. O texto saiu na seção Art in Brazil 1950-2011 -  p. 37-42. com curadoria de Ronaldo Brito.








[1] Lucio Costa (1902-1998) teve participação crucial na vinda de Le Corbusier ao Brasil, foi um dos fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e tem obras marcantes como os edifícios do Parque Guinle (1944), os planos urbanísticos de Brasilia (1956) e da Barra da Tijuca-Rj (1967); Oscar Niemeyer (1909) é o mais famoso arquiteto brasileiro, filiou-se ao partido comunista em 1957, projetou e construiu obras fundamentais como o conjunto da Pampulha (1942), o edifício Copan (1951), a Casa das Canoas (1953), os palácios de Brasilia (1956-1960)  a sede do Partido Comunista em Paris (1966), a editora Mondadori, na Itália (1968), e em 1998 recebeu o prêmio Pritker de arquitetura; Affonso Eduardo Reidy (1909-1964) um dos únicos arquitetos modernistas a se dedicar ao urbanismo, foi arquiteto da Prefeitura do Distrito Federal, na então capital Rio de Janeiro, onde realizou obras marcantes com o conjunto residencial Pedregulho (1946), o Museu de Arte Moderna (1954) e a urbanização(em parceria com Roberto Burle Marx) do Parque do Flamengo (1962-1964); Jorge Moreira (1904-1992), entre suas obras mais importantes estão as Residências Sérgio Corrêa da Costa, (1951/1957) e Antônio Ceppas (1951/1958), mas sua realização maior é o campus da Universidade do Brasil, na Ilha do Fundão (1949-1962).
[2] Os irmãos Milton (1914-1953) e Marcelo (1908-1964) formaram um dos mais importantes escritórios de arquitetura. Destacam-se pelas pesquisas tipológicas com o edifício vertical e entre suas obras estão a Associação Brasileira de Imprensa – ABI (1936), o Aeroporto Santos Dumont (1936) e o edifício Marques do Herval (1953).
[3] A equipe era formada por Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos, Carlos Leão e Oscar Niemeyer.
[4] ARGAN, G. C. “Arquitetura moderna no Brasil”. IN.- XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma geração. São Paulo, Cosac &Naify, 2003.
[5] APUD, Argan, p. 173.
[6] “Razões da Nova Arquitetura”. In.- Lucio Costa: Sobre Arquitetura. Porto Alegre, uniritter, 2007.
[7]Esta definição da linguagem como jogo de diferenças é de Ferdinand Saussure. I.A. Bois, na sua leitura semiológica do cubismo estabelece paralelos entre as análises de Saussure e o movimento de liberação do signo plástico que o cubismo analítico de Picasso e Braque. Ver “A lição de Kahnweiller” (Pintura como Modelo, Martins Fontes, 2009) e “The Semiology of Cubism” (Picaso&Braque: a symposium, Moma, 1992).
[8] Depois da geração de Warchavichik, cabe a Vilanova Artigas (1915-1985) o papel de liderança do que foi chamado de “brutalismo paulista”, o que remete a emergência de sua obra ao contexto da crise da arquitetura moderna nos anos 1960. Ênfase nos aspectos construtivos e no sentido público da arquitetura define essa contundente obra, capaz de provocar reverberações nas obras singulares de Paulo Mendes da Rocha (1928), Joaquim Guedes (1932-2008).
[9] Ver a esse respeito BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo – vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo, Cosac &Naify, 1999.