sábado, 20 de julho de 2013



CASA DAROS – Rio





Os arquitetos são sempre a favor da mudança, disse Rem Koolhaas. Em geral isso significa estar a favor da urgência. Na modernidade era urgente realizar o futuro no presente. Daí a força do Novo como o futuro a ser constantemente atualizado. A urgência contemporânea, contudo, é de modalidade distinta, dado que justamente a dimensão que garantia o horizonte de projetividade – o futuro – se revela uma angustiante impossibilidade. O presente contemporâneo não se sustenta no passado, nem muito menos crê que seja possível projetar ou mesmo prescrever o futuro. No entanto, o vácuo presente paradoxalmente não é imóvel ou estático, ao contrário, é continua mobilidade. A urgência hoje é mais uma vibração, um frenesi ininterrupto, que se encerra em si mesmo, sem direção ou sentido. E nesse real altamente veloz, é claro que o dispositivo mais ágil e adequado é a imagem.
O projeto da Casa Daros se mostra favorável à renovação, no entanto, resiste à urgência presente. Nesse sentido, se mostra uma lição de tempo, ou mais especificamente, da não rendição à velocidade, à aceleração e simultaneidade dos processos contemporâneos. Tudo se resume a um momento de calma, de parada, de tranquilidade ante à vertigem e à intensidade contemporâneas, de subversão à obrigação de aderir ao frenesi do presente, de ser capaz de adiar a resposta imediata ao próximo estímulo, de suspender a obrigação de estar continuamente em estado de prontidão e alerta, nessa nova “jaula de ferro” virtual. Ali, não há porque ter pressa, ali o tempo pode escoar lentamente, ali o caminhar pode não ter objetivo e o olhar pode perder-se, permitir demorar-se nas obras, na luz que entra pelas janelas ou simplesmente no pátio da passagem do tempo.
Inaugurada no mesmo momento (março de 2013) em que outro museu - o MAR – surgia no Rio, a Fundação Daros Latinoamérica preferiu uma evidência discreta, sem muito alarde. Apesar de ser uma instituição dedicada à arte latino-americana - seria de se esperar uma exposição de arte brasileira pertencente ao acervo - a fundação optou por uma exposição de abertura bastante localizada: a arte contemporânea da Colômbia. Exceto por Doris Salcedo, os outros artistas eram em quase sua totalidade desconhecidos do público brasileiro. Mas mesmo antes da abertura, as escolhas realizadas se mostram significativas. A Casa Daros escolheu um imóvel marcante, mas fora do eixo histórico cultural do Rio – a região do centro – igualmente, também, fora do eixo turístico dos bairros litorâneos. Sua localização geográfica é singular: nem Botafogo, nem Urca, nem Copacabana. Ao contrário, num ponto de passagem, em situação intermediária.  Um entre, enfim.
Do ponto de vista da intervenção arquitetônica, a primeira vista, tudo parece ter se resumido a uma esperada e meticulosa restauração do prédio neoclássico. Não há evidencias no exterior de grandes intervenções, também ao adentrarmos o museu, aparentemente, a sensação é recuperação, mais do que de transformação. Só aí, já haveria grande mérito pelo esmerado trabalho de recuperação das madeiras (do piso, das soleiras, das esquadrias, das portas e soleiras), das ferragens e dos estuques dos frontões encimando as janelas, das pilastras com seus capiteis jônicos e entablamentos e dos ornatos das fachadas.
Em termos de espacialidade, tudo se resume ao interior, o que denota a manutenção da planta e da tipologia neoclássicas (alas ao redor de dois pátios, com eixo central marcado). No entanto, o aparente respeito ao existente se mostra aparente. Comecemos pelo programa: de instituição de ensino para espaço de exposições. Na origem sede de fazenda, depois orfanato e, enfim, internato para meninas. Desde “Vigiar e Punir”, Michel Foucault já  havia exposto a correlação entre a instituição da disciplina e a ordem geométrica, cujo exemplo determinante era o panóptico de Jeramy Benthan. Prisões, hospitais, quartéis, escolas, programas que dependiam da instituição de um rígido regime disciplinas logo adotaram padrões de organização espacial de enfática regularidade geométrica.  A ordem das disposições espaciais favorecia o controle de corpos e mente, e vice-versa. Horários, classificações, mecanização dos gestos e movimentos, hierarquias, tudo enfim, encontrava uma perfeita correspondência no enquadramento espacial. A planta neoclássica com sua clareza geométrica e evidente organização se ajustou perfeitamente a tais instituições. O tipo de edificação organizado em alas ao redor de pátio se impôs. A marcada centralidade da composição exibia a ordem hierárquica, da entrada bem marcada e do controle de acessos e das relações entre interior e exterior.
A nova proposição programática – um centro de artes – implode qualquer índole de controle autoritário, na medida em que se pretende uma instituição de caráter público, que faculta e incentiva o livre acesso do público.
O projeto arquitetônico começa com essa mudança de caráter que o programa impõe. A nova vocação espacial precisa, e eis o problema, conviver e aceitar a marcação geométrica do espaço acadêmico com sua sequencialidade firme e presente. Como inferir fluidez e dinâmica a uma edificação construída ao longo de eixos longitudinais articulados por relações ortogonais.  
O grande mérito (sim, a meu ver é evidente a sua alta qualidade) do projeto é operar com algo que, a princípio, é um dos elementos mais sutis e complexos da arquitetura: a luz é o verdadeiro material construtivo do projeto. Contrário a pretensão natural do arquiteto em apostar na tectônica da construção, a Casa Daros solicitou a transubstanciação do espaço. Se as balizas da construção se mantêm, a ordem dos usos se modifica substantivamente. E não se contentando em atender ao modelo de eficiência vigente a certa mentalidade técnica da arquitetura, que responde a demandas imediatas (que agora também são mediáticas) o projeto apostou na luz como fator de percepção poética do espaço.
E em se tratando de um espaço expositivo, saber lidar com iluminação é imprescindível e básico. Na Casa Daros, a marcação regular das portas e janelas, típicas do partido neoclássico em alas, permite a entrada da luz pelos dois lados. A gradação luminosa constrói espaços distintos, salas intensamente iluminadas, outras, por exigências museográficas se fecham para o exterior, definindo uma atmosfera obscura e introspectiva. Ora predomina a luz natural, ora a artificial, mas em qualquer dos casos a luminosidade deve ser projetada de modo a revelar a unidade do espaço. E na diversidade de dimensões e usos, cada ambiente supõe uma gradação específica e controlada. Salas de recepção, salas de exposição com aberturas, salas de exposição fechadas e corredores de conexão implicam espaços distintos (módulos quadrangulares, longitudinais, retangulares). Uma coisa é definir sistemas e pontos de iluminação de acordo com as possibilidades da coisa a iluminar, no caso as obras-de-arte, outra é fazer isso e ao mesmo tempo revelar a espacialidade singular de cada espaço. Na Casa Daros as paredes perdem importância para dar lugar a entes planares tradicionalmente subsidiários à visão canalizada da janela perspectiva: pisos e tetos ganham protagonismo. Antes, superfícies funcionais a apoiar e proteger usos, agora planos significantes.
Tudo começa no hall de entrada com seu piso de mármore em padrão xadrez. Nessa antessala mais estreita onde o exterior está mais próximo, os discretos detalhes decorativos afloram e um halo de luz no alto anuncia outra atitude necessária que esse ambiente pede. Passando pelo saguão de acesso, amplo e claro, no qual o grande balcão acentua o sentido de longitudinalidade, enquanto as altas janelas laterais marcam o ritmo geométrico e inundam a sala de luz solar. Na parede oposta, o grande arco que emoldura a passagem marca o eixo de continuidade do percurso.  Não há como não admirar a perfeição dos encaixes e o assentamento dos planos de madeira do assoalho, que unificam todo o primeiro pavimento, assim como as guias transversais de iluminação que marcam a rítmica do espaço.







Na sequência, temos um ambiente diferenciado ao longo desse eixo principal. Essa singularidade, hoje, é ressaltada, pelo tratamento museográfico que optou por ali expor trabalhos em vídeo que exigiram o rebaixamento da luminosidade. Ao ultrapassá-la, adentramos numa sala de proporções e estruturas idênticas à anterior. Entalada, portanto por dois grandes ambientes de pisos e tetos iluminados, esse espaço ocupa posição central e escoa para os lados, para o alto e para baixo. Discretas colunas surgem coladas aos espessos muros laterais (cujos vãos estão vedados por conta da exposição), e por trás, numa faixa estreita de espaço a luz, por entre enfáticas estruturas arquitetônicas, surge por cima e por baixo porque teto e piso se abrem. Escadas descem e sobem conectando-se aos pavimentos adjacentes e a cobertura se torna transparente. Plataformas elevadas atravessam o vão iluminado completando a sensação de disponibilidade e abertura. O interior dessa antessala é completado pela caixa do elevador que liga o piso inferior (antigo porão) aos pavimentos superiores ocupados pela administração e biblioteca, muito embora, por fora não haja essa percepção da divisão interna. Do pátio, tudo que vemos é o padrão de um porão alto e um pavimento alto e único.









Justamente nesse centro, o projeto mais interveio para transformar a substancia do espaço, embora tudo faça para não se revelar. Uma nova configuração arquitetônica se impôs, o que exigiu soluções técnicas ousadas, de reforço estrutural, mais exatamente uma nova amarração estrutural de vigas e pilares metálicos com fundação independente justaposta à estrutura das arcadas do subsolo para tanto liberar os vãos como sustentar os novos pavimentos interpostos na caixa existente. O se vê é a inserção de uma estrutura independente dentro da estrutura preexistente.




Ao final desse eixo de entrada, o espaço gira 90° à direita e entramos numa galeria completamente vedada e obscura, que abriga a instalação que ocupa a totalidade da sala. Outro giro em ângulo reto (e aqui já entendemos o movimento da planta ao redor do pátio retangular) e o espaço muda radicalmente. Ao invés de amplas galerias, um longo corredor com altas portas e janelas, cuja rítmica é acentuada pelas obsessivas molduras de madeira que envolve os vãos e o rodapé. As salas de exposição agora estão do outro lado das portas e paredes, cada qual com dimensões variadas, verdadeiros cubos brancos minimizados de interferências, todas deslocadas para o chão ou o teto - saídas de ar condicionado, guias de iluminação, sistemas de vigilância, controles de unidade. Novamente um jogo de introspectivos planos iluminados, um espaço límpido, etéreo e gráfico. 







Ao centro o corredor se dilata anunciando um espaço expositivo aberto e maior, como as galerias anteriores, depois novamente uma sequência de pequenas salas onde o percurso expositivo se conclui.
Enquanto o 1º pavimento se define pelo circuito expositivo e pela marcação geométrica do espaço, configurado pela sucessão de salas regulares ao redor do pátio, no pavimento inferior o espaço escoa livremente através das múltiplas arcadas. Foi necessário rebaixar o piso para que o antigo porão pudesse abrigar novos usos, o que fez blocos de fundação aflorar. Ali se encontram café/restaurante, áreas administrativas e depósitos, loja, atelier de criação, áreas expositivas e um auditório. E apesar do baixo pé-direito e da forte marcação dos arcos e espessos muros, esse conjunto diversificado de usos não se confina em compartimentos estanques. De modo geral, o espaço corre desenvolto e fluído. A clara luz do pátio inunda essas galerias sem retenções, corre por entre as arcadas, convertendo pesadas pilastras e muros em puro desenho de volumes alvos. O nivelamento do piso do pátio com o cimentado do interior foi outra inteligente e sensível decisão, pois confere unidade e continuidade entre interior e exterior, dirimindo qualquer sensação de opressão espacial. 






Aliás, vale chamar atenção para o atencioso tratamento do pátio, claro e aconchegante, com seu piso iluminado e céu aberto. Houve, com vimos, um discreto mas decisivo rebaixamento de nível, visível na base dos muros que fecham o patio, onde foi adicionado um novo revestimento, logo abaixo do baldrame de granito original. Placas de granito assentadas com extremo cuidado e simplicidade riscam e esquadrinham o espaço, dando escala e materialidade ao espaço e estabelecendo diálogo civilizado com a marcação rigorosa dos vãos que marcam o ritmo do movimento. O jogo de pisos e tetos ganha ali interpretação singularíssima. Um chão ativo de módulos geométricos cujas juntas não desaparecem, ao contrário, afloram negativas, qual verdadeiras linhas orgânicas. A modulação dos vãos que cerca o pátio novamente impõe a marcação rítmica ao espaço. O contraponto ao piso é o céu aberto, o mais puro e cristalino dos planos luminosos.





Luz, rítmica, espaço e temporalidade. Para se lidar com esses elementos aparentemente tão fugidios é necessária uma sensibilidade poética e só quem conquista intimidade com o projeto pode deles se valer. Isso se conquista com a experiência.
Na Casa Daros o grande mérito do projeto de arquitetura foi encontrar uma fina sintonia com as outras esferas envolvidas. Justamente o diferencial é a integração de projetos: institucional, museográfico, luminístico, estrutural, restauração, programação visual, mobiliário. Essa congregação e entendimento não ocorre, evidentemente, de imediato. Muito ao contrário, implica um exercício de compreensão e tolerância, o que só se dá ao longo de um tempo de convivência e experiência. O singular da Casa Daros é afirmar essa temporalidade avessa à urgência irrefletida dos tempos atuais, é encontrar uma justa medida entre as diferenças.

É possível, sim! 


Projeto de arquitetura: Ernani Freire Arquitetos Associados Ltda.
Projeto Estrutural: Geraldo Filizola
Projeto de Iluminação: Monica Lobo
Projeto de Restauração: Regina Pontin de Mattos
Curador da coleção Casa Latino-americana: Hans-Michael Herzog

  Direção Casa Daros Rj: Eugenio Valdés Figueroa e Isabella Rosado Nunes 

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