CASA DAROS – Rio
Os arquitetos são
sempre a favor da mudança, disse Rem Koolhaas. Em geral isso significa estar a
favor da urgência. Na modernidade era urgente realizar o futuro no presente.
Daí a força do Novo como o futuro a ser constantemente atualizado. A urgência
contemporânea, contudo, é de modalidade distinta, dado que justamente a
dimensão que garantia o horizonte de projetividade – o futuro – se revela uma
angustiante impossibilidade. O presente contemporâneo não se sustenta no
passado, nem muito menos crê que seja possível projetar ou mesmo prescrever o
futuro. No entanto, o vácuo presente paradoxalmente não é imóvel ou estático,
ao contrário, é continua mobilidade. A urgência hoje é mais uma vibração, um
frenesi ininterrupto, que se encerra em si mesmo, sem direção ou sentido. E
nesse real altamente veloz, é claro que o dispositivo mais ágil e adequado é a
imagem.
O projeto da
Casa Daros se mostra favorável à renovação, no entanto, resiste à urgência
presente. Nesse sentido, se mostra uma lição de tempo, ou mais especificamente,
da não rendição à velocidade, à aceleração e simultaneidade dos processos
contemporâneos. Tudo se resume a um momento de calma, de parada, de
tranquilidade ante à vertigem e à intensidade contemporâneas, de subversão à
obrigação de aderir ao frenesi do presente, de ser capaz de adiar a resposta
imediata ao próximo estímulo, de suspender a obrigação de estar continuamente
em estado de prontidão e alerta, nessa nova “jaula de ferro” virtual. Ali, não
há porque ter pressa, ali o tempo pode escoar lentamente, ali o caminhar pode
não ter objetivo e o olhar pode perder-se, permitir demorar-se nas obras, na
luz que entra pelas janelas ou simplesmente no pátio da passagem do tempo.
Inaugurada no mesmo momento (março de 2013) em que outro museu - o MAR –
surgia no Rio,
a Fundação Daros Latinoamérica preferiu uma evidência discreta, sem muito alarde. Apesar de
ser uma instituição dedicada à arte latino-americana - seria de se esperar uma
exposição de arte brasileira pertencente ao acervo - a fundação optou por uma
exposição de abertura bastante localizada: a arte contemporânea da Colômbia.
Exceto por Doris Salcedo, os outros artistas eram em quase sua totalidade
desconhecidos do público brasileiro. Mas mesmo antes da abertura, as escolhas
realizadas se mostram significativas. A Casa Daros escolheu um imóvel marcante,
mas fora do eixo histórico cultural do Rio – a região do centro – igualmente,
também, fora do eixo turístico dos bairros litorâneos. Sua localização
geográfica é singular: nem Botafogo, nem Urca, nem Copacabana. Ao contrário,
num ponto de passagem, em situação intermediária. Um entre, enfim.
Do ponto de
vista da intervenção arquitetônica, a primeira vista, tudo parece ter se
resumido a uma esperada e meticulosa restauração do prédio neoclássico. Não há
evidencias no exterior de grandes intervenções, também ao adentrarmos o museu,
aparentemente, a sensação é recuperação, mais do que de transformação. Só aí,
já haveria grande mérito pelo esmerado trabalho de recuperação das madeiras (do
piso, das soleiras, das esquadrias, das portas e soleiras), das ferragens e dos
estuques dos frontões encimando as janelas, das pilastras com seus capiteis
jônicos e entablamentos e dos ornatos das fachadas.
Em termos de
espacialidade, tudo se resume ao interior, o que denota a manutenção da planta
e da tipologia neoclássicas (alas ao redor de dois pátios, com eixo central
marcado). No entanto, o aparente respeito ao existente se mostra aparente.
Comecemos pelo programa: de instituição de ensino para espaço de exposições. Na
origem sede de fazenda, depois orfanato e, enfim, internato para meninas. Desde
“Vigiar e Punir”, Michel Foucault já
havia exposto a correlação entre a instituição da disciplina e a ordem
geométrica, cujo exemplo determinante era o panóptico de Jeramy Benthan.
Prisões, hospitais, quartéis, escolas, programas que dependiam da instituição
de um rígido regime disciplinas logo adotaram padrões de organização espacial
de enfática regularidade geométrica. A
ordem das disposições espaciais favorecia o controle de corpos e mente, e
vice-versa. Horários, classificações, mecanização dos gestos e movimentos,
hierarquias, tudo enfim, encontrava uma perfeita correspondência no
enquadramento espacial. A planta neoclássica com sua clareza geométrica e
evidente organização se ajustou perfeitamente a tais instituições. O tipo de
edificação organizado em alas ao redor de pátio se impôs. A marcada
centralidade da composição exibia a ordem hierárquica, da entrada bem marcada e
do controle de acessos e das relações entre interior e exterior.
A nova
proposição programática – um centro de artes – implode qualquer índole de controle
autoritário, na medida em que se pretende uma instituição de caráter público,
que faculta e incentiva o livre acesso do público.
O projeto
arquitetônico começa com essa mudança de caráter que o programa impõe. A nova
vocação espacial precisa, e eis o problema, conviver e aceitar a marcação
geométrica do espaço acadêmico com sua sequencialidade firme e presente. Como
inferir fluidez e dinâmica a uma edificação construída ao longo de eixos
longitudinais articulados por relações ortogonais.
O grande mérito
(sim, a meu ver é evidente a sua alta qualidade) do projeto é operar com algo
que, a princípio, é um dos elementos mais sutis e complexos da arquitetura: a
luz é o verdadeiro material construtivo do projeto. Contrário a pretensão
natural do arquiteto em apostar na tectônica da construção, a Casa Daros
solicitou a transubstanciação do espaço. Se as balizas da construção se mantêm,
a ordem dos usos se modifica substantivamente. E não se contentando em atender
ao modelo de eficiência vigente a certa mentalidade técnica da arquitetura, que
responde a demandas imediatas (que agora também são mediáticas) o projeto apostou
na luz como fator de percepção poética do espaço.
E em se tratando
de um espaço expositivo, saber lidar com iluminação é imprescindível e básico.
Na Casa Daros, a marcação regular das portas e janelas, típicas do partido
neoclássico em alas, permite a entrada da luz pelos dois lados. A gradação
luminosa constrói espaços distintos, salas intensamente iluminadas, outras, por
exigências museográficas se fecham para o exterior, definindo uma atmosfera
obscura e introspectiva. Ora predomina a luz natural, ora a artificial, mas em
qualquer dos casos a luminosidade deve ser projetada de modo a revelar a
unidade do espaço. E na diversidade de dimensões e usos, cada ambiente supõe
uma gradação específica e controlada. Salas de recepção, salas de exposição com
aberturas, salas de exposição fechadas e corredores de conexão implicam espaços
distintos (módulos quadrangulares, longitudinais, retangulares). Uma coisa é
definir sistemas e pontos de iluminação de acordo com as possibilidades da
coisa a iluminar, no caso as obras-de-arte, outra é fazer isso e ao mesmo tempo
revelar a espacialidade singular de cada espaço. Na Casa Daros as paredes
perdem importância para dar lugar a entes planares tradicionalmente
subsidiários à visão canalizada da janela perspectiva: pisos e tetos ganham
protagonismo. Antes, superfícies funcionais a apoiar e proteger usos, agora
planos significantes.
Tudo começa no
hall de entrada com seu piso de mármore em padrão xadrez. Nessa antessala mais estreita
onde o exterior está mais próximo, os discretos detalhes decorativos afloram e
um halo de luz no alto anuncia outra atitude necessária que esse ambiente pede.
Passando pelo saguão de acesso, amplo e claro, no qual o grande balcão acentua
o sentido de longitudinalidade, enquanto as altas janelas laterais marcam o ritmo
geométrico e inundam a sala de luz solar. Na parede oposta, o grande arco que
emoldura a passagem marca o eixo de continuidade do percurso. Não há como não admirar a perfeição dos
encaixes e o assentamento dos planos de madeira do assoalho, que unificam todo
o primeiro pavimento, assim como as guias transversais de iluminação que marcam
a rítmica do espaço.
Na sequência,
temos um ambiente diferenciado ao longo desse eixo principal. Essa
singularidade, hoje, é ressaltada, pelo tratamento museográfico que optou por
ali expor trabalhos em vídeo que exigiram o rebaixamento da luminosidade. Ao
ultrapassá-la, adentramos numa sala de proporções e estruturas idênticas à
anterior. Entalada, portanto por dois grandes ambientes de pisos e tetos
iluminados, esse espaço ocupa posição central e escoa para os lados, para o
alto e para baixo. Discretas colunas surgem coladas aos espessos muros laterais
(cujos vãos estão vedados por conta da exposição), e por trás, numa faixa
estreita de espaço a luz, por entre enfáticas estruturas arquitetônicas, surge
por cima e por baixo porque teto e piso se abrem. Escadas descem e sobem
conectando-se aos pavimentos adjacentes e a cobertura se torna transparente.
Plataformas elevadas atravessam o vão iluminado completando a sensação de
disponibilidade e abertura. O interior dessa antessala é completado pela caixa do elevador que liga o piso inferior (antigo porão) aos pavimentos superiores ocupados pela administração e biblioteca, muito embora, por fora não haja essa percepção da divisão interna. Do pátio, tudo que vemos é o padrão de um porão alto e um pavimento alto e único.
Justamente nesse centro, o projeto mais interveio para transformar a substancia do espaço, embora tudo faça para não se revelar. Uma nova configuração arquitetônica se impôs, o que exigiu soluções técnicas ousadas, de reforço estrutural, mais exatamente uma nova amarração estrutural de vigas e pilares metálicos com fundação independente justaposta à estrutura das arcadas do subsolo para tanto liberar os vãos como sustentar os novos pavimentos interpostos na caixa existente. O se vê é a inserção de uma estrutura independente dentro da estrutura preexistente.
Justamente nesse centro, o projeto mais interveio para transformar a substancia do espaço, embora tudo faça para não se revelar. Uma nova configuração arquitetônica se impôs, o que exigiu soluções técnicas ousadas, de reforço estrutural, mais exatamente uma nova amarração estrutural de vigas e pilares metálicos com fundação independente justaposta à estrutura das arcadas do subsolo para tanto liberar os vãos como sustentar os novos pavimentos interpostos na caixa existente. O se vê é a inserção de uma estrutura independente dentro da estrutura preexistente.
Ao final desse
eixo de entrada, o espaço gira 90° à direita e entramos numa galeria
completamente vedada e obscura, que abriga a instalação que ocupa a totalidade
da sala. Outro giro em ângulo reto (e aqui já entendemos o movimento da planta
ao redor do pátio retangular) e o espaço muda radicalmente. Ao invés de amplas
galerias, um longo corredor com altas portas e janelas, cuja rítmica é
acentuada pelas obsessivas molduras de madeira que envolve os vãos e o rodapé.
As salas de exposição agora estão do outro lado das portas e paredes, cada qual
com dimensões variadas, verdadeiros cubos brancos minimizados de interferências,
todas deslocadas para o chão ou o teto - saídas de ar condicionado, guias de
iluminação, sistemas de vigilância, controles de unidade. Novamente um jogo de
introspectivos planos iluminados, um espaço límpido, etéreo e gráfico.
Ao centro o
corredor se dilata anunciando um espaço expositivo aberto e maior, como as
galerias anteriores, depois novamente uma sequência de pequenas salas onde o
percurso expositivo se conclui.
Enquanto o 1º
pavimento se define pelo circuito expositivo e pela marcação geométrica do
espaço, configurado pela sucessão de salas regulares ao redor do pátio, no
pavimento inferior o espaço escoa livremente através das múltiplas arcadas. Foi
necessário rebaixar o piso para que o antigo porão pudesse abrigar novos usos,
o que fez blocos de fundação aflorar. Ali se encontram café/restaurante, áreas
administrativas e depósitos, loja, atelier de criação, áreas expositivas e um
auditório. E apesar do baixo pé-direito e da forte marcação dos arcos e
espessos muros, esse conjunto diversificado de usos não se confina em
compartimentos estanques. De modo geral, o espaço corre desenvolto e fluído. A
clara luz do pátio inunda essas galerias sem retenções, corre por entre as
arcadas, convertendo pesadas pilastras e muros em puro desenho de volumes alvos.
O nivelamento do piso do pátio com o cimentado do interior foi outra
inteligente e sensível decisão, pois confere unidade e continuidade entre
interior e exterior, dirimindo qualquer sensação de opressão espacial.
Aliás, vale
chamar atenção para o atencioso tratamento do pátio, claro e aconchegante, com
seu piso iluminado e céu aberto. Houve, com vimos, um discreto mas decisivo rebaixamento
de nível, visível na base dos muros que fecham o patio, onde foi adicionado um
novo revestimento, logo abaixo do baldrame de granito original. Placas de
granito assentadas com extremo cuidado e simplicidade riscam e esquadrinham o
espaço, dando escala e materialidade ao espaço e estabelecendo diálogo
civilizado com a marcação rigorosa dos vãos que marcam o ritmo do movimento. O
jogo de pisos e tetos ganha ali interpretação singularíssima. Um chão ativo de
módulos geométricos cujas juntas não desaparecem, ao contrário, afloram
negativas, qual verdadeiras linhas orgânicas. A modulação dos vãos que cerca o
pátio novamente impõe a marcação rítmica ao espaço. O contraponto ao piso é o
céu aberto, o mais puro e cristalino dos planos luminosos.
Luz, rítmica, espaço
e temporalidade. Para se lidar com esses elementos aparentemente tão fugidios é
necessária uma sensibilidade poética e só quem conquista intimidade com o
projeto pode deles se valer. Isso se conquista com a experiência.
Na Casa Daros o
grande mérito do projeto de arquitetura foi encontrar uma fina sintonia com as
outras esferas envolvidas. Justamente o diferencial é a integração de projetos:
institucional, museográfico, luminístico, estrutural, restauração, programação
visual, mobiliário. Essa congregação e entendimento não ocorre, evidentemente,
de imediato. Muito ao contrário, implica um exercício de compreensão e
tolerância, o que só se dá ao longo de um tempo de convivência e experiência. O
singular da Casa Daros é afirmar essa temporalidade avessa à urgência
irrefletida dos tempos atuais, é encontrar uma justa medida entre as
diferenças.
É possível, sim!
Projeto de
arquitetura: Ernani Freire Arquitetos Associados Ltda.
Projeto
Estrutural: Geraldo Filizola
Projeto de
Iluminação: Monica Lobo
Projeto de
Restauração: Regina Pontin de Mattos
Curador da
coleção Casa Latino-americana: Hans-Michael Herzog
Direção Casa
Daros Rj: Eugenio Valdés Figueroa e Isabella Rosado Nunes
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