sexta-feira, 27 de setembro de 2013

NIEMEYER I

BRUTALISMO PLÁSTICO – AUDITÓRIO DO EDIFÍCIO MANCHETE
Projeto: Oscar Niemeyer

Uma surpresa o auditório do Edifício Manchete[1], projeto de Oscar Niemeyer. Não o conhecia, mas a oportunidade surgiu porque lá ocorreu nos dias 23 e 24 de setembro o ARQFUTURO 2013.

Edifício Manchete - projeto Oscar Niemeyer 

Se o prédio da Manchete era bastante conhecido, a anfiteatro se mantinha oculto, escondido por trás do bloco principal. À primeira vista nada parece lembrar o projeto de Niemeyer. Nada daquelas coberturas ondulantes e expansivas como nos auditórios do Caminho Niemeyer, nada da forma aérea e rasante como o auditório do Parque Ibirapuera. Aqui o que vemos é uma imensa caixa de concreto aparente, cheio de volumes cúbicos que afloram na parte alta da grande fachada de entrada. Denso, pesado e estático, tudo faria lembrar a linguagem do brutalismo paulista de Paulo Mendes da Rocha ou de Lina Bo Bardi.




Mas o contraste de linguagem entre os dois blocos, contudo, é rigorosamente calculado. Para chegar ao auditório, precisamos passar pelos límpidos e elegantes espaços do saguão de entrada do edifício, atravessado por mezaninos e cheio de brilhos e reflexos; subir até o quarto piso, de onde vemos ao fundo a poderosa fachada-muralha de concreto.  Um pátio aberto separa os dois blocos, e o caminho rumo ao auditório ocorre por uma marquise recortada e vedada por panos de vidro.
Um espelho d’água à frente da imensa porta centralizada na fachada completa a disposição espacial. A brancura das placas de mármore do piso contrasta com o negrume do espelho d’água, que por força de seu alinhamento com o retângulo da grande porta, estabelece uma continuidade visual ao mudar de diedro, passando de plano líquido a plano vertical rígido. Acima, grandes caixas de concreto do qual afloram arbustos e folhagens, executam uma verdadeira dança geometricamente coreografada, de recuos e avanços qual um gigantesco relevo plástico.
 A área do pátio é relativamente pequena em relação às proporções amplificadas do auditório, cuja caixa de palco apresenta um imenso pé direito, como se vê no corte, alcançando a altura máxima da catenária que desenha a cobertura. Justamente o plano de fechamento em concreto é o que se volta para o pátio. Logo se compreende que a imensa porta alinhada ao espelho d’água fecha o vão que dá para o palco e que, se necessário se abre para o pátio, caso de espetáculos ao ar livre.



Tanto o espelho d’água como a dupla abertura do palco (para o interior e para o exterior), assim como o tratamento da circulação como promedade são procedimentos típicos do partido de Niemeyer nos teatros e auditórios.
Incomum é a forte materialidade e a absoluta frontalidade do plano da fachada-muralha. Ao contrário dos outros tantos auditórios desenhados por Niemeyer, em que o volume domina o espaço ao redor, pela sua posição centralizada, e por isso pode impor a força de seu desenho de perfil, no caso do Teatro do edifício Manchete, por ter sido construída em área bastante consolidada e em lote difícil, entalado por entre as construções existentes e encostas, a solução seguiu outro partido: assumir a frontalidade e investi-la de dinamismo plástico. Não há distancia a ser tomada para perceber a totalidade da forma, não há afastamentos ao redor por onde percorrer e assim apreender a unidade da forma. Nesse absoluto de frontalidade, os espaços são revelados aos poucos, de modo parcial e gradativo. 



Não obstante, observando com mais cuidado a implantação do conjunto, percebemos que esse mesmo constrangimento urbano – lote irregular e massa edificada no entorno - impôs também o alinhamento do bloco principal de 12 pavimentos junto à testada do lote, dispondo sua grande e cristalina fachada para a Rua do Russel e o para o Aterro do Flamengo. A implantação forma um L tendo no braço maior o edifício principal, e noutro, o eixo ao longo do qual se conclui com o auditório. Forma-se, assim uma dupla planaridade: uma, a "nobre simplicidade" da fachada do bloco principal; outra, a "severa grandeza" da elevação do auditório.
E apesar do expressivo e inusitado desta muralha frontal, a planta do auditório assume a configuração tipológica reconhecível, com as empenas laterais curvas em desenvolvimento radial típico. No interior, o diferencial são os níveis elevados nas laterais, que definem plataformas de serviços técnicos e dos quais se tem acesso aos bastidores. Esse setor assinala a abertura espacial da plateia e a empena de fechamento marca a curvatura do plano. Este recebe um tratamento escultural, marcado por um padrão geométrico de sólidos retangulares, claro contraponto aos cubos suspensos da fachada. E de fato, o conjunto das partes mecânicas envolve praticamente o núcleo espacial formado pelo conjunto palco/plateia: passarelas elevadas acima do teto acústico, coxias, urdimentos, camarins cercando o palco, salas de projeção contornando o fundo da plateia, infraestrutura técnica em piso inferior. É isso que provoca a sensação de que o volume exterior é muito maior que o espaço interior.

corte longitudinal do auditório



Diga-se de passagem, também não seria a primeira vez que Niemeyer se mostra assimilativo em relação à linguagem de outros arquitetos e de outras tradições não modernas. Já no início de carreira, na residência Francisco Peixoto (1940) em Cataguases/MG e em sua própria residência na Rua Sacopã (1942), o arquiteto demonstraria diálogo com o partido nativista de Lucio Costa. Na década seguinte, a proximidade com Sérgio Bernardes igualmente se expressaria na conciliação entre o industrial e o arcaico no projeto da Residência Edmundo Canavellas (1954), em Pedro do Rio/RJ. Em Brasília, é notória as alusões à antiguidade romana no Palácio da Justiça e no Palácio do Itamarati, onde são visíveis o tema das arcadas que envolvem o edifício, e as alusões à tradição grega no Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal, em que o tema dominante são colunas e pórticos.
Pode ser que Niemeyer tenha se tornado repetitivo no final de sua longa trajetória, tenha se conformado no conforto de seu consagrado partido plástico, mas ao fim e ao cabo, continua surpreendendo, literalmente tirando “coelhos da cartola”. Sinal de que tinha alguma noção dos limites de seus procedimentos e da necessidade de contrariá-los mesmo que para continuar sustentando-os.




[1] O edifício foi construído nos anos 1960 para o grupo Bloch, cuja falência em 2000 deixou-o em estado de abandono.  Recentemente passou por um processo de revitalização –retrofit – liberando-o novamente para ocupação, agora por multinacionais do ramo de petróleo e gás, conforme reportagem da revista Veja (maio de 2012). Como não tenho informação sobre o projeto de recuperação, não há como garantir que se o projeto de Niemeyer foi respeitado na íntegra.

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