NOTAS SOBRE A X
BIENAL DE ARQUITETURA
Correspondências
Charles
Baudelaire
A natureza é
um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar
não raro insólitos enredos;
O homem o
cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o
espreitam com seus olhos familiares.
Como ecos
longos que à distância se matizam
Numa
vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta
quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as
cores e os perfumes se harmonizam.
Há aromas
frescos como a carne dos infantes,
Doces como o
oboé, verdes como a campina,
E outros, já
dissolutos, ricos e triunfantes,
Com a fluidez
daquilo que jamais termina,
Como o
almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória
exaltam dos sentidos e da mente.
[Tradução de
Ivan Junqueira. In: Ivo Barroso (org.), Charles Baudelaire - Poesia e prosa.
Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.]
Los Angeles |
Centro Cultural São Paulo - teto jardim |
A Bienal de
Arquitetura de São Paulo bem que poderia ser chamada de Bienal da Cidade. Mais
do que apresentar intervenções exemplares, obras edificadas, pequenas e
múltiplas soluções para ínfimos problemas, formando aquela tradicional
procissão enfadonha de arquiteturas banais e desinteressantes justapostos à
salas especiais de homenageados, a
curadoria optou por apresentar uma pauta de temas sobre a cidade. Afinal, se
algum consenso há nos dias atuais é a recolocação do tema da cidade no centro
dos debates.
Ideias,
situações, discussões, ações são disparadas, para demonstrar que a cidade é
muito mais do que pensamos, mais do que podemos conceber, que ela está muito
além do que a arquitetura pode imaginar. Mais rica, problemática e paradoxal.
A opção de
espalhar núcleos da Bienal pela cidade, ao invés de contê-la num único espaço
me parece decorrente dessa dupla constatação: o reconhecimento dos limites
atuais de profissão e a consciência da complexidade crescente da cidade.
Mas também
decorre de uma atitude teórica, ou mais precisamente, de certa visão da
contemporaneidade: a da condição do nomadismo como inerente à experiência
metropolitana. Nessa deriva programada temos a chance de atravessar territórios,
paisagens, fluxos; temos a oportunidade de nos deixar olhar a cidade, mas
também ser olhados por ela. Entre um trânsito e outro, atravessamos as
estruturas “expositivas” espalhadas ao longo desse percurso circular.
Essa estratégia
tem algo da dialética site/non site de
Robert Smithson, no qual estando num lugar se remete ao outro e vice-versa, mas
também há algo do conceito site specific
já que em cada espaço institucional escolhido, o que se “expõe” tem algo a ver
com o lugar expositivo.
O centro
nervoso, a meu ver, é o Centro Cultural São Paulo, onde os caminhos se cruzam.
Vou me concentrar fundamentalmente nesse local. Lá a mostra “Modos de Agir”, se
espalha num espaço que se encontra em situação intermediária: entre o mecânico
e o orgânico, entre arquitetura e paisagem, entre edifício e equipamento
urbano. Ali, entre passarelas e plataformas, cidades mais diversas são
discutidas. Das insólitas e inesperadas experiências orientais (a escala
gigantesca, a velocidade das transformações, os lugares novos abandonados, a
reversão da modernização em favor da volta ao “natural”) à crise dramática e
assustadora de Detroit (o fracasso do modelo de modernização e da cidade
industrial moderna), a questão de que tipo de cidade estamos construindo se
impõe. E para demonstrar que as coisas estão longe de se reduzirem à fáceis posições
dicotômicas, o caso de Los Angeles, outro exemplo de cidade-automóvel
igualmente impõe a contra-pergunta do caso Detroit: nesta luta entre pessoas e
carros, realmente em cidades como as nossas, podemos abrir mão de viver sem o
automóvel? A título do pensar, a pergunta é tão ou mais necessária que
simplesmente decretar a máquina como o vilão de nossas violentas realidades
urbanas.
Nesse módulo –
Carrópolis (carville) – não pude deixar de ficar agarrado pela penetrante
observação de Jean Baudrillard, num dos painéis expostos:
“Algo
da liberdade da circulação nos desertos se encontra aqui; Los Angeles, por sua
estrutura extensa, nada mais e do que um fragmento habitado. Portanto, as
freeways não desfiguram a cidade nem a paisagem; atravessam-na e desatam-na sem
alterar o caráter desértico dessa cidade e expandem idealmente ao único prazer
profundo, que é circular”.
A X Bienal, como
vimos, foi tomar exemplos longínquos para colocar problemas que nos são comuns.
Mas também trouxe realidades locais, que o Brasil, ou mais explicitamente, o
eixo dominante SUL-SUDESTE desconhece. É
desconcertante o que vemos em “Brasil: o espetáculo do crescimento”. Ali, pelo
visto, uma violenta urbanização/industrialização está em curso, da qual pouco
sabemos. Belo Monte, Carajás, São Francisco, Agro-Negócio, Pré-Sal, todos estes
fenômenos estão mobilizando e transformando as regiões
Norte/Nordeste/Centro-oeste. Redes de energia, transporte, portos e aeroportos,
cidades, tudo surgindo a uma velocidade inédita, formando um caldeirão
imponderável de economias, urbanidades, sociabilidades e culturas. Coisas que
acontecem no Brasil que o Sudeste desconhece mas que não escapam de um
investigador atento e arguto como Eduardo Viveiros de Castro, em outra citação
exposta na exposição:
“A
Amazônia hoje é o epicentro do planeta. Do Brasil, é o epicentro, o alfa e o
ômega. O Brasil se desloca para a Amazônia (...) Tudo acontece lá, o tráfico de
drogas passa por lá, os interesses econômicos estão lá, os grandes capitais
estão fluindo para lá, as questões da ecologia, o olhar do mundo, a paranoia e
a ilusão do paraíso, tudo esta lá, ou voltando para lá. Para o bem ou para o
mal, a Amazônia virou o lugar dos
lugares, natural como cultural; aliás, é lá que se esta sendo cozinhado um
gigantesco guisado cultural, e que daqui nós não temos a menor ideia do que
esta se passando”.
Porém, esse
Brasil distante faz eco mais ao Sul. Tal qual um sismógrafo, uma linha do tempo
(RIO NOW), novos mecanismos para flagrar as transformações em curso (NOVAS CARTOGRAFIAS)
e uma imaginação dos novos tempos em tempo de regressão (RIO FUTURO – Sergio
Bernardes) nos alertam para a antiga Capital Federal que está passando por um
processo de transformação profundo, cuja direção parece muito desconectada de
qualquer conceito ou visão do que seja efetivamente a dimensão pública ou de um
processo de discussão crítica. E ainda que São Paulo não esteja diretamente
representada na mostra (exceto pela esclarecedora história do “minhocão”), está
implicitamente (ou talvez explicitamente) envolvida uma vez que a proposta do
novo Plano Diretor coincide com a Bienal.
E não nos esqueçamos
de que o fenômeno das multidões nas ruas aponta, em escala nacional, para o
debate sobre “o direito à cidade”.
Antes de passar
para os próximos núcleos, não posso deixar de apontar a bela e tocante
homenagem ao “Robin Hood Gardens” projeto extraordinário e visionário dos
Smithsons, em emocionante depoimento do casal sobre a história do projeto e com
imagens históricas e esclarecedoras de uma obra de habitação exemplar. Uma
experiência a ser, sem dúvida, recuperada e valorizada.
No MASP, os
expoentes do “brutalismo” – Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Lina Bo Bardi – se
alinham a artistas como Hélio Oiticica e Cildo Meireles, numa aproximação
incomum entre arquitetura e artes plásticas, o que abre perspectivas
inesperadas de diálogos plásticos, exorcizando o sempre presente provincianismo
que provoca o desdém mútuo entre as duas esferas. Há, sim, muito em comum entre
arte e arquitetura do período, pois o brutalismo apesar de sua densidade e
consistência nunca deixou de incentivar o livre percorrer dos espaços e a arte
de Oiticica e Meireles sempre esteve atenta e participante do urbano, mesmo nos
interiores do Museu.
Desdobrando a
lógica curatorial de correlacionar espaços institucionais e mostras
expositivas, temos no SESC Pompéia o lugar para as propostas colaborativas e
coletivas, do mesmo modo que no Museu da Casa Brasileira experiências
iconoclastas do habitar desde a década de 1970 são apresentadas (Casa Bola de
Eduardo Longo, Casa Moriyama de Ryue Nishizawa e o programa Minha Casa, Minha
Vida), não sem um viés crítico lançado contra o modo paternalista e medíocre
das propostas edilícias e políticas habitacionais em curso no país.
Assim, nos
diversos e dispersos núcleos temáticos (os “modos de ...”) espalhados por São
Paulo, abrem-se discussões, problemas são explicitados e aí sim algumas intervenções
de arquitetura e urbanismo, pontuais mas estratégicas, são apresentadas. Não à
título de soluções ideais para os problemas levantados, mas pela convicção de
que projeto é, de fato e de direito, uma forma de discutir não só os problemas
metropolitanos, mas também de se refletir as condições de possibilidade e as
especificidades da própria disciplina da arquitetura.
Estas e tantas
outras atividades compõem a programação da X Bienal. Podemos concluir dizendo
que esta se concebeu como uma série de eventos (exposições, debates, música,
cinema, ocupações, intervenções artísticas, caminhadas), como acontecimentos na
vida pulsante da Metrópole, de modo algum à parte, antes participante. O seu
modo de ser, portanto, não se reduziu ao exclusivamente visual, típico das
exposições de arquitetura, antes mergulhou numa multiplicidade de sentidos e
sensorialidades, em clave verdadeiramente sinestésica, no qual a percepção
intelectual e deslocamento corporal não se separam. E tal ordem de sinestesia seria
o próprio da experiência metropolitana da transitividade, do jogo descontínuo
entre o fixo e o fugidio, entre o eterno e o transitório, entre a dissolução da
experiência na dispersividade contemporânea e a tentativa dramática de
reconstituí-la, ainda que apenas por um breve instante. O tema baudelairiano das correspondências surge de modo a
articular distâncias e a nos lembrar de que percepção é atenção, mas uma
atenção que não impõe interpretação definitiva ou se contenta com a mera imagem
superficial. É propriamente um continuo retornar, um perpétuo rodear por
diversos meios e vias, sem pretender esgotá-la.
Para ver,
percorrer, pensar ...