A GRAÇA ESTÉTICA DA ARQUITETURA DE OSCAR
NIEMEYER*
Lúcio Costa não
se cansou de repetir que a obra de Niemeyer traz a "marca inevitável do
verdadeiro criador"[1] - sua originalidade
decorre certamente da importância atribuída à "expressão artística",
numa época em que exigências pragmáticas e "funcionalistas" tendem a
sobrepor-se aos valores artísticos. A originalidade de Niemeyer não resulta do
gesto gratuito e virtuoso da inovação per si, antes é a manifestação
mais forte de um sentimento vital - abertura franca, sem reservas para o
exterior, expansão plena do ser a preencher o vazio. Talvez na visão de Lúcio
Costa esta seja a nossa singular condição cultural: encarar sem reservas essa
situação de tábula rasa que nos persegue desde a data do descobrimento.
Niemeyer, mais do que nenhum outro, teria aceitado de bom grado essa condição e
procurado tirar dela o máximo proveito.
O tipo de individualismo que seu
trabalho revela é o que se Lúcio Costa qualifica, "genérico e
produtivo", representa a afirmação de uma personalidade expressiva alheia
à diluição que o processamento técnico do mundo moderno tenta impor. Justificaria-se,
assim, a defesa de categorias tradicionais, tais como: gênio, liberdade
criativa, invenção, imaginação, para qualificar a obra de Niemeyer, pois estas
assumem valor positivo a ser preservado como fatores irredutíveis ao processo
de objetivação dominante. Essa idealização funda-se na convicção de que o
artista, ostentando uma personalidade vigorosa, excitante e impositiva, poderia
expor-se publicamente, isto é, exteriorizar na obra toda expressividade, sem
sentir-se esmagado ou constrangido por situações ou forças contrárias, seja a
publicidade diluidora do real moderno, seja o poder dissolvente de um espaço
monumental.
As formas extrovertidas de
Niemeyer propalam que, aos desígnios de sua vontade o real se dobra. O gesto
desimpedido, espontâneo, é sinônimo de ação criativa e explicita a condição de
um sujeito que é pura disponibilidade. Afinal, nenhuma contingência, seja o
peso opressor de um passado, seja a incômoda instabilidade do presente ou a
incerteza do futuro, freia o processo criativo. Qualquer iniciativa será sempre
inaugural, haja vista que, nos desenhos de Niemeyer, o País Novo é representado
como vazio, superfície intocada à espera de uma ação.
Plásticas, as formas
distendem-se elasticamente numa expansão lenta e confortável. Esforços de
tensão, resistência dos materiais, limitações da técnica, imposição geográfica,
enfim, nenhum desses fatores transparece na obra - predomina a pureza da forma.
Livres das imposições da natureza, os planos ondulantes, as linhas em
movimento, os volumes luminosos espalham-se graciosamente sobre a extensão infinita
do território. Ao longo de sua produção Niemeyer desenvolveu soluções
originais, com destaque especial para as audaciosas estruturas de cobertura,
ora completamente vazadas, ora quase totalmente fechadas, todos se
caracterizando pela flutuação e flexibilidade. Mesmo em edifícios de mais de um
pavimento, onde o volume retangular impõe-se, a sensação de rigidez e
compacticidade é atenuada graças a introdução do pilotis, usualmente em forma
de "V", que dissolvem o peso mediante o movimento rítmico. Tal sistema
reduz pela metade os pontos de apoio no solo e, graças à particularidade de sua
configuração (triângulo invertido, cujo vértice recolhe as cargas e as
transmite para fundações por um único ponto), temos a impressão que o edifício,
apesar do volume grandioso, toca levemente a superfície, apoiando-se
delicadamente no solo.
A preocupação com a leveza
revela obviamente a precedência da forma em relação à matéria e aos
procedimentos construtivos. Daí que a arquitetura de Niemeyer se construa -
conforme nota S.S. Telles[2] - como desenho, colocando
sempre em destaque o perfil do volume da edificação. De fato, para escapar das
exigências da matéria, a forma só pode erigir-se enquanto pura figura
geométrica. O gesto que imprime o desenho sobre a matéria desaparece quando a
obra está concluída. À dissimulação da tectônica, se soma igualmente ao que
normalmente se vê como o trabalho do
projeto. Com aparente facilidade, Niemeyer passaria diretamente do croqui para
a construção, tornando desnecessária (pelo menos é o que vemos nas
apresentações[3]
dos projetos) toda a fase de precisões métricas e funcionais, do longo processo
projetual. Nossos códigos de representação convencionais (planta, corte,
elevação) parecem dispensáveis, ante a força sintética do desenho à mão livre,
capaz de condensar num gesto forma, espaço e estrutura.
Sublimada, a
forma se transforma em luz e as forças que tensionam a estrutura acabam
dissimuladas pela potência da expressão plástica. Para alcançar a pureza do
Belo, Niemeyer constitui uma realidade apartada da contingência e da
temporalidade das coisas materiais. As obras, por consequência, fundam o
espaço, fazendo com que o ambiente circundante concentre-se totalmente sobre o
objeto construído. É, exatamente, tal poder de atração o que dá integridade à
forma. Dominando o entorno, os edifícios adquirem inevitável feição monumental.
Porém, ao fazer as formas flutuarem sobre o horizonte, Niemeyer confessa sua
intenção de evitar qualquer contato que contamine a idealidade da forma.
Assentá-las firmemente no terreno seria submetê-las a ação da força de
gravidade, admiti-las como entes materiais com peso, matéria, duração e, por
conseguinte, finitude.
X
“Leveza”,
“graça”, “plasticidade” são os termos usuais para qualificar a obra de Oscar
Niemeyer. Destes, o que mais me
interessa aqui é “graça”, talvez o único que possa ser assumido como uma
categoria estética, justamente por estar correlacionado ao ideal do belo.
Senão vejamos: os grandes vãos, os inacreditáveis
balanços, as extensas coberturas aéreas, os apoios que mergulham em espelhos
d’água, as caprichosas e sensuais curvas das formas esculturais, tudo enfim
parece procurar o, a primeira vista, construtivamente inviável, para no instante
seguinte, de modo a afirmar a vitória da imaginação e do engenho, logrando
êxito e efeito.
As formas
sublimam as resistências tectônicas, superam as forças estáticas conduzindo-as
a um repouso tranquilo, apagam o esforço da matéria moldada para vencer a força
da gravidade, dissolvem o peso na luz alva que ressoa nas superfícies
geométricas de perfil nítido e cortante.
Suspensão é o
que se costuma caracterizar esta arquitetura que busca um novo desafio técnico,
formal, espacial para no momento de sua realização dissimular toda a
dificuldade imposta para sua viabilização. Para vencer a inexorável força da
gravidade, tanto no sentido físico, como teológico, o arquiteto faz o ato da
elevação, da flutuação. Não implantar, afundar , cravar o edifício no solo, mas
antes pousar, levitar, suspender. Entre as exigências e as superações do
empírico, entre esse desaparecer e aparecer, a arquitetura de Oscar Niemeyer
desvela sua graça.
Guilherme Wisnik[4] já apontou essa correlação
entre graça e gravidade na obra de Niemeyer por um viés literário, tomando os
aforismos poéticos de Simone Weil como estímulo.
A criação é o resultado do movimento descendente da gravidade, do
movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça em segunda
potência. A graça é a lei do movimento descendente. Descer é subir
relativamente à gravidade moral. A gravidade moral faz-nos cair para o alto.
Simone Weil
- A Gravidade e a Graça (Martins, 1993)
Apesar dos ecos
teológicos, o ponto mais interessante é essa movimentação cruzada entre
gravidade e graça, ou em outros termos, entre moralidade e beleza na criação
artística. É justamente sobre este ponto que gostaria de me deter, de início,
procurando acompanhar historicamente as definições de graça.
A facilidade, a
espontaneidade, o desdém pela ideia de trabalho, a dissimulação de toda a
técnica são traços conhecidos daquela ideia de arte que aparece sem esforço
aparente. Desde O cortesão (1528)
de Baltazar Castiglione, no período da renascença, essa fusão entre
artisticidade e naturalidade se apresenta como definidor da graça estética. A
especificidade do estético que começa a se anunciar nos diz que não se trata
mais de uma dádiva momentânea dos deuses a inspirar poetas e heróis gregos, nem
a luz divina que cai para abençoar e assim salvar o homem do peso do pecado
original, como no conceito da graça cristã ou mesmo neoplatônica.
No renascimento,
portanto, a graça começa a ser entendida como uma qualidade que pode ser conquistada
pelo estudo e pela cultura. Ao invés de algo que vem do exterior, a graça
entendida como forma moral ou estética pode ser objeto de aquisição, seja para
tornar mais virtuoso o homem, seja para elevar o processo criativo do artista,
na medida em que ele toma consciência de seu modo de ser, de fazer e de agir.
No entanto,
graciosidade nunca significou exagero, futilidade, retórica, artificialismo. Ao
contrário, quis reagir contra os efeitos exagerados do barroco, defendendo o
controle, a precisão e o verdadeiro. Segundo Boileau, em sua L’Art Poétique (1674) a graça poética
estaria na construção do verso que equilibra elegância, ritmo, leveza com
clareza funcional.
Começa a se
tornar evidente a relação intrínseca que une graça e movimento. Hogarth[5] define graça como a “beleza do movimento
equilibrado”. A famosa linha sinuosa do pintor inglês é quase já a afirmação de
um signo formal que vale por si, que agrada pela graça de seu movimento, não
mais se sujeitando às regras da proporcionalidade geométrica, na medida em que
não delimita, não encerra, sendo tão somente fronteira que conecta, une.
Nesse fluir
desimpedido, mas que implica um controle preciso de movimento, estabelece-se a
oscilação entre a espontaneidade e a decisão moral que governa nossas ações e
movimentos. Quanto mais o movimento aparecer natural e espontâneo, não deixando
entrever o ato da vontade, mais gracioso será.
A naturalidade conquistada pela força da vontade consciente é o sinal da
dignidade moral do espírito elevado. Não pareceria possível que estas duas
categorias pudessem ser compartilhadas, mas esse é o modo como Schiller vincula
beleza e moralidade em seu ensaio Sobre a Graça e a Dignidade, de 1793.
Pensando em
Oscar Niemeyer, surge a interrogação: o arquiteto efetua a separação entre o
plano estético e o plano moral ou suas formas são passíveis de um juízo moral?
Uma primeira
distinção que gostaria de fazer é que não compartilho da visão de que a graça
em Niemeyer possa significar gratuidade. Apesar das bravatas
anti-funcionalistas, a forma exige tanto controle quanto qualquer outra
instância, seja prática ou técnica. A meu ver, Niemeyer, a seu modo,
compreendeu em Le Corbusier a liberação do signo plástico moderno. Tal como nas
manobras cubistas, o signo se libera do vínculo causal com seu referente,
estando apto e livre para se desenvolver segundo lógica própria e em tantas
possiblidades quanto a imaginação possa dar conta. No caso de Niemeyer, isso
significou a liberação da razão da forma de obrigações mecânicas impostas pela
função. Mas, o que nas artes plásticas foi compreendido como conquista de
autonomia plástica, na arquitetura foi visto como “atitude formalista”.
Não obstante, o
formalismo de Niemeyer, se visto pelo viés da forma na sua autonomia, pode
receber leitura positiva. A singularidade dessa arquitetura não reside tanto na
assunção do signo plástico como estrutura construtiva, daí a sua redução à
seção geométrica regular, composição típica do racionalismo europeu, mas como
na definição de Hogarth, na afirmação de um signo formal que vale por si, que
agrada pela graça de seu movimento: puro desenho, solto, animado, livre. A beleza no movimento.
Mas a graça
espontânea do traço de Niemeyer se obtém com extrema economia de meios. Com
gestos sintéticos e contínuos o arquiteto consegue um excesso de forma. Ao
excesso se devem as acusações de gratuidade e luxo, à contenção a admiração
pela simplicidade e pureza. Outra dicotomia igualmente posta em questão é
interior e exterior. Na convenção funcionalista, ambos são ditados por um mesmo
termo – a função, ortodoxia de saída negada pelo arquiteto no início de sua
carreira. Em Niemeyer passar do exterior para o interior (e vice-versa) parece
supor um único e mesmo movimento, denotando um complexo raciocínio topológico
deflagrado pelos planos em continuidade (sejam pisos, lajes, paredes e
coberturas), cuja percepção decorre na atuação do corpo no espaço. É por isso
que se diz que os volumes e plantas de Niemeyer são, tal como numa fita de
moebius, exteriorizados, pois não supõem uma interioridade ideal, logo
encontram em estado de reversibilidade contínuo. A forma não se decompõe, ao contrário, se reafirma unitária ao longo
do movimento.
A beleza no
movimento não se reduz, é óbvio, apenas à dimensão das formas plásticas,
podendo ser apreendida, por excelência na dança, na qual o mais deliberado
gesto parece o mais natural. Também no plano das ações humanas, o perfeito
equilíbrio entre vontade e ação, denota uma qualidade superior de beleza
moral.
Niemeyer pode
ter aprofundado a cisão entre o belo e o político, visto que este pertenceria
ao mundo do trabalho, do mundo pesado da desigualdade e dos embates sociais,
mas a integridade de sua atitude artística é clara e enfática. Por isso, a
arquitetura de Niemeyer dá a impressão de habitar um lugar ideal, no qual as
tensões são pacificadas e as formas encontram um lugar natural. Tal idealidade
assinala, é inegável, um desacordo profundo com o presente conflituado, ponto
de contato com os ideais progressistas da arquitetura. De fato, elas apontam
para uma inevitável utopia no qual todos teriam participação e acesso ao Belo.
Ainda que por um
instante, as coisas que o homem moderno constrói, nossos corpos e a natureza
pareceriam encontrar-se em correlação pacífica e proporcionada.
* texto publicado originalmente no site Vitruvius na sessão "Tributo a Niemeyer":
KAMITA, João Masao. A graça estética da arquitetura de Oscar Niemeyer. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.07, Vitruvius, dez. 2012 <http://www.vitruvius.com.br/.../read/arquitextos/13.151/4631>.
KAMITA, João Masao. A graça estética da arquitetura de Oscar Niemeyer. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.07, Vitruvius, dez. 2012 <http://www.vitruvius.com.br/.../read/arquitextos/13.151/4631>.
[1]
COSTA, L. Muita construção, alguma arquitetura e um milagre. In.- Arte
em Revista 4. São Paulo, CAC, 1983.
[2]
Afirma Sophia S. Telles:“... sua imaginação se quer livre de toda
contingência. São formas que se querem naturais que a elas cabe apenas a
contemplação.” Dissertação de Mestrado. São Paulo, Fac. de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 1988,
op.cit. p. 83.
[3]
Esse modo de exposição do processo criativo da arquitetura tem, a meu ver,
muito de retórica, no sentido de uma estrutura argumentativa elaborada, segundo
fins comunicativos específicos. Merece, inclusive, um estudo mais aprofundado.
[4]
Ver “Oscar Niemeyer: Intuição Trágica e Repouso”. In.- WISNIK, G. Estado Crítico: à deriva nas cidades.
São Paulo, Publifolha, 2009, pp.-180-185.
[5] A
esse respeito, ver “As ideias artísticas de William Hogarth”. In.- ARGAN, G.C. A arte moderna na Europa: de Hogarth a Picasso.
São Paulo, Cia das Letras, 2010, pp.- 47-60.
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