NIEMEYER II
NIEMEYER-BURLE MARX e a lírica da paisagem.
O caso da Residência
Edmundo Canavelas
Residência Edmundo Canavelas - Oscar Niemeyer |
Residência Lota Macedo Soares - Sergio Bernardes |
Apesar da apropriação
indébita feita pelo filme “Flores Raras” da Casa Edmundo Canavellas, deslocando
a autoria do projeto e atribuindo-lhe outro endereço, confundindo ainda mais o
público, do ponto de vista estritamente arquitetônico, essa confusão entre as duas residências e
seus respectivos autores não deixa de ser totalmente infundada. O parentesco
formal e construtivo entre as duas residências é fato, assim como é sabido que
o jovem Sérgio Bernardos à época estava muito próximo de Oscar Niemeyer, tendo
inclusive trabalhado no escritório deste no início da carreira. Tal proximidade
se evidenciava na troca ocorrida entre projetos do início da década de 1950. Se
Sergio Bernardes se revelava o mais talentoso herdeiro da primeira geração de
arquitetos modernistas com obras claramente debitarias do partido e do
vocabulário carioca em diversas residências do final de década de 1940 e início
da década de 50 como a Residência Jadir de Souza (1951) e o Conjunto Sanatorial
de Curicica em Jacarépagua (1948-50), na casa de Lota Macedo Soares (1951-53)
em Samambaia/Petrópolis há claros sinais de experimentalismos na conjunção
inesperada de sistemas construtivos distintos: o industrial e o rústico. Nesta
casa de campo, Sergio Bernardes utiliza processos de padronização típicos da
construção industrial, evidentes na estrutura de treliças e pilares metálicos,
na cobertura de telhas onduladas de alumínio e nos grandes panos de vidro.
Porém, o lado arcaico se mostra nos muros de pedra, nas paredes de tijolo à
vista e no revestimento dos pisos e nas venezianas da ala dos quartos.
A casa tem pouco daquela atmosfera
doméstica e intimista, assumindo um tom urbano e cosmopolita, bem ao estilo de
sua proprietária. Isso se reflete no núcleo social concebido como um misto de
local de estar e galeria de arte, em franca interação e abertura com a paisagem
ao redor. Se o arranjo espacial seguia o partido típico das residências
modernistas daqueles anos - uma planta aberta com organização em T, em cujo
centro está o núcleo social e serviços e nas extremidades os setores íntimos –
há certa mescla de informalidade geométrica e ascetismo puritano que traem
certa influência da arquitetura americana daqueles anos, o que de certo modo
assinala uma espécie de recusa do jovem arquiteto ao idealismo estético em favor
de uma atitude mais direta na abordagem do projeto e da construção.
Em princípio, Niemeyer parece ter
assimilado esse experimentalismo construtivo de Sérgio Bernardes na Casa
Canavellas (1954-55), ao introduzir elementos um tanto estranhos ao seu
vocabulário. Refiro-me obviamente à incorporação da treliça metálica e dos
apoios de pedra nos 4 cantos do perímetro. Ponto interessante é a exploração dos
materiais: pedra, telha de alumínio, liga metálica, forro de madeira, vidro.
Explorar técnicas e materiais de construção não é o procedimento muito usado
pelo raciocínio de Niemeyer. A poética dos materiais é incomum à plástica
formal.
Mas a novidade era esse
sistema conjugado à um plano curvo de cobertura, esse sim um elemento familiar
a Niemeyer, contudo, incomum à gramática de Sergio Bernardes naqueles anos. Ali
a viga treliçada funciona tensionada, por força da catenária, razão pela qual
os pilares de pedra assumirem uma configuração distinta do usual em Niemeyer,
mais pesada de um triângulo retângulo, cuja hipotenusa é curva, tendo a base
cravada firmemente no chão e o vértice o ponto de articulação com a treliça. A
rigidez dos apoios contrasta com a leveza da cobertura.
O tema da cobertura curva aparece
timidamente na Residência Jadir de Souza, mas será definitivamente incorporada
e explorada no Pavilhão da CSN no Parque Ibirapuera de 1954, no Pavilhão do
Brasil na Exposição Internacional de Bruxelas (1958) e no Pavilhão de São
Cristóvão (1958-60). Já Niemeyer parece não ter dado mais continuidade à esse
experimentalismo construtivo e o mesmo se poderia dizer com esse tipo de
cobertura e sistema portante (apesar de ter retornado alguns anos depois na igreja
Nossa Senhora de Fátima, em Brasília).
Mas esse movimento só nos
convence de que o diálogo entre os dois arquitetos era vivo e instigante. Como
vimos no caso do Auditório do Edifício Manchete, Niemeyer não era avesso nem
muito menos imune à influência de outras arquiteturas. Ao contrário da
mitologia que se construiu em torno do “mestre” – genial inventor,
absolutamente original – Niemeyer apenas demostra deter cultura arquitetônica e
que todo projeto é uma conversa com tantos quantos projetos que se tenha vivido
e experimentado, seja de que modo for.
Feitos estes esclarecimentos iniciais,
vamos às considerações específicas sobre a residência Canavellas.
X
O caminho de acesso, em
suave inclinação, se faz numa das encostas que forma o vale. Assim, desde o
percurso inicial, o projeto indica o eixo espacial dominante da paisagem. Atravessamos
de ponta a ponta a extensão da propriedade e por entre as árvores do caminho
vislumbramos abaixo o plano marcante da cobertura da construção. Na extremidade
oposta à entrada de acesso, fazemos o retorno em cota mais baixa e finalmente
divisamos, em sentido inverso, a casa interceptando a profundidade do espaço. O
vale agora surge como um ambiente acolhedor, suas altas encostas amparam e
protegem. Seguindo em direção à residência, vemos a quadra, a piscina, o jardim
geométrico.
A arquitetura se implanta
estrategicamente em sentido transversal ao vale. Ela se resume a uma ampla e
extensa cobertura curva apoiada em 4 grandes pilares de pedra Cerca de três
quartos da casa é reservado ao setor social, vazado e transparente. A intenção
é clara: não impedir a continuidade do espaço. Tanto que, ao modo de um Mies
Van der Rohe, uma parede de pedra que delimita a área de estar, isolando o setor
dos quartos, cozinha e de serviços, continua seu movimento, avançando, solta,
em direção ao jardim geométrico. O contraponto é a fileira de palmeiras
imperiais inserida entre o gramado e o caminho de entrada.
Esse muro de pedra atua como um direcionador
perceptivo, que antecipa e acelera a vazão espacial, canalizando-a para o outro
lado da casa. Ao atravessá-la,
percebemos a mudança de configuração do jardim: o motivo em xadrez cede vez
para formas orgânicas, verdadeiras massas curvilíneas se expandindo em tons
contrastantes de lilás e amarelo esverdeado, ressoando contra a superfície
verde do gramado. Este setor se distingue pela inclinação do terreno, que se
move em ondulações, em franca concordância com as linhas do jardim. O segmento
seguinte suave e tranqüilo, dominado pelo lago de contornos orgânicos de um
lado e em livre desenvolvimento, na outra margem, sem aquela formalidade orgânica
e abstrata do setor antecedente.
A busca de uma interação
com a paisagem é o nexo dominante deste projeto de Niemeyer-Burle-Marx. O
partido arquitetônico define-se num gesto básico: implantar a casa em sentido
transversal ao eixo longitudinal do vale, dividindo-o em dois setores (na
verdade em três se considerarmos a parte do lago). A conjunção ambiental se
deflagra pela curvatura invertida do plano da cobertura que assim faz ressoar a
concavidade do vale.
O partido paisagístico
qualifica e potencializa a setorização imposta pela secção do lote que o
projeto arquitetônico produz. No lado do acesso à casa se localizam a piscina e
a quadra, ou seja, as atividades reservadas ao lazer e ao esporte. Nesse lado,
o paisagismo de Burle-Marx introduz um padrão de desenho ortogonal, definindo
uma malha xadrez no gramado que cerca a piscina. Além disso, seguindo a guia
dos quadrados, introduz arbustos bicromáticos em duas faixas em alinhamento
alternado e uma fileira de palmeiras imperiais no limite que separa o gramado
do caminho de acesso. Também foram plantadas árvores frutíferas nesse setor.
No lado posterior, como vimos, é a curva que
determina o desenho do jardim. O gramado em retícula estruturava área anterior,
agora atua como plano genérico, contra o qual se elevam arbustos que formam
ondas curvilíneas de tons intensos e irradiantes. Um conjunto bicolor (lilaz e
verde amarelado) mais compacto se concentra no ângulo que define o contorno do piso
de base, na base do pilar da parte dos quartos. Outra faixa tem tonalidade
única (lilaz) e se desenvolve em curso ondulante em direção ao lago.
Entremeando estes dois planos, massas arbustivas completam o jardim. Uma delas
em particular se eleva, criando um interessante contraponto vertical à
horizontalidade dos arbustos. Ao contrário do que se poderia supor, o caráter
pictórico do paisagismo de Burle-Marx acata e explora as sugestões do terreno,
bem como opera com massas volumétricas, não se reduzindo a simples transposição
do desenho bidimensional no jardim. O prolongamento do terreno é ocupado pelo
lago de contornos sinuosos, seguindo até o limite da propriedade. Mas quanto
mais avançam mais diluídos seus contornos vão se tornando, tanto que uma de
suas margens encontra diretamente a base da encosta preenchida pela floresta.
Já a casa é concebida a partir
do desenho da cobertura em meio à exuberante cadeia de montanhas ao redor. Trata-se
de um procedimento típico ao partido de Niemeyer: definir o projeto pelo perfil
de cobertura. Apesar da amplitude desse teto curvo, os ambientes internos são
cômodos e bem proporcionados. Tal como na Casa das Canoas, os quartos e a
cozinha são de dimensões modestas, para não dizer intimistas. A planta é de
fato relativamente reduzida porque seu perímetro não coincide com a projeção da
cobertura. A sala de estar é estreita em relação ao setor íntimo e de serviços,
dando movimento à planta, mas este estreitamento serve para liberar a área de
varanda. O fechamento é predominantemente de painéis de vidro no sentido do
comprimento, os dois opostos são pesadas paredes de pedra: uma explode a planta
rumando para o jardim em movimento horizontal; a outra, que acolhe a lareira,
em sentido vertical vasa o telhado. Ao seu redor forma-se uma faixa de piso de
pedra portuguesa que funciona como um grande avarandado, expandindo a área de
uso da sala. Aqui o exterior participa diretamente da casa.
Duas questões se colocam
diante das decisões de projeto, tanto o arquitetônico, como o paisagístico. Se
o plano curvo de cobertura leve e aéreo é uma forma conhecida do repertório de
Niemeyer, o mesmo não se pode dizer dos insólitos pilares de pedra de formato
triangular com hipotenusa curva. Outro detalhe incomum é a curiosa “treliça”
metálica de secção quadrada que apóia a cobertura de telhas de amianto. Qual o
sentido dessa estranha combinação de materiais e sistemas de suporte?
Quanto
ao projeto de Burle-Marx, que sentido poderia ser atribuído a essa contraposição
entre o geométrico e o orgânico no jardim?
Poderíamos começar dizendo
que da parte de Niemeyer poderia ser uma espécie de flerte com a poética
brutalista (como vimos acima, Sérgio Bernardes irá levar essa via experimental na
radical casa de Lota Macedo Soares). Mas isso parece pouco em se tratando de um
arquiteto que faz de sua auto-confiança o vetor de sua experimentação plástica.
Da parte de Burle-Marx, poderíamos dizer que se trata de uma resposta ao
programa, um fator de diferenciação entre um jardim social e de lazer e um
jardim contemplativo. O paisagista foi extremamente econômico na seleção das
espécies vegetais (pouco mais de 7 espécies), mas aplicados com um sentido
preciso e calculado. Reduzidos a puros elementos plásticos, ou seja, as
espécies individuais ou agrupadas se convertem em efetivos elementos
construtivos, ou seja, autônomos, não tanto por se reduzirem a condição de
formas pictóricas (como se o jardim fosse simplesmente uma tela pintada)
apagando sua condição de tipos botânicos, mas sobretudo por se revelarem em seu
ser formal. O que significa individualizar seu contorno formal puro.
Muito embora muitos a vejam como uma tenda
suspensa, não me parece a comparação mais apropriada. Afinal, não se trata de
uma superfície tênsil (uma membrana tensionada) cujos esforços se dão mais por
tração e elasticidade, ou pela relação entre curvatura e protensão, daí o uso
de cabos e mantas ou cascas trabalhando em conjunto, mas de um plano apoiado em
vigas e pilares, isto é, as telhas de aluminio são colocadas sobre uma malha
estrutural fixa (esta sim operando por tração), sem portanto participar do
sistema de esforços portantes. E o arquiteto é o primeiro a afirmar que
desejava criar um contraste entre o peso dos pilares em contraposição à leveza
da cobertura.
Minha impressão é de que a casa foi concebida
como um pórtico, ou mais precisamente, como um portal que viabiliza um rito de
passagem. É possível imaginar que desde o portão de acesso acima, seguindo pelo
caminho descendente até retornar e vislumbrar a casa entre o vale, o arquiteto
e o paisagista estejam já efetuando uma mudança de registro do regime de
sensibilidade daquele que para lá ruma, justamente um habitante da metrópole.
Gradativamente o “citadino” adentra num ambiente dominado pela paisagem
natural. Através desse percurso o arquiteto arma uma reversão e o que no
princípio víamos como frente, ao seguir o caminho e retornar se revela fundo.
Por isso, logo na entrada da casa, ao contrário do se poderia esperar, localiza
a parte do lazer com piscina e quadra. A geometria do jardim confirma que as
atividades ali desenvolvidas estão em continuidade com o setor social da
residência, portanto, ainda regidas por valores de convivência urbana. O ponto
de interpolação é a sala de estar e o limite que anuncia a mudança de registro
da sociabilidade urbana para o exercício contemplativo da natureza é justamente
o plano opaco, que situado entre dois panos de vidro completa a vedação da
sala, no lado que dá para o lago.
Registro similar parece
também explicar que o uso híbrido de técnicas e materiais também opera o
trânsito entre o artesanal e o industrial, ou mesmo, entre o aéreo da cobertura
suspensa e a massa dos 4 pontos de apoios. E nesse sentido sua razão de ser
seria poética, antes que meramente construtiva.
Essa passagem entre
cultura e natureza e vice-versa, dá a nota do projeto modernos da arquitetura
brasileira do período. Niemeyer e Burle-Marx/arquitetura e paisagismo parecem
afirmar que à Arte cabe estabelecer essa continuidade tranquila e prazerosa e
quando temos em mente que num país que no plano retórico mistifica as belezas
naturais, mas cuja história é de exploração violenta da Natureza, esse projeto
ganha especial beleza e lirismo.
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