segunda-feira, 4 de novembro de 2013


NIEMEYER II

 

NIEMEYER-BURLE MARX  e a lírica da paisagem.

O caso da Residência Edmundo Canavelas

 
Residência Edmundo Canavelas - Oscar Niemeyer

Residência Lota Macedo Soares - Sergio Bernardes


Apesar da apropriação indébita feita pelo filme “Flores Raras” da Casa Edmundo Canavellas, deslocando a autoria do projeto e atribuindo-lhe outro endereço, confundindo ainda mais o público, do ponto de vista estritamente arquitetônico, essa confusão entre as duas residências e seus respectivos autores não deixa de ser totalmente infundada. O parentesco formal e construtivo entre as duas residências é fato, assim como é sabido que o jovem Sérgio Bernardos à época estava muito próximo de Oscar Niemeyer, tendo inclusive trabalhado no escritório deste no início da carreira. Tal proximidade se evidenciava na troca ocorrida entre projetos do início da década de 1950. Se Sergio Bernardes se revelava o mais talentoso herdeiro da primeira geração de arquitetos modernistas com obras claramente debitarias do partido e do vocabulário carioca em diversas residências do final de década de 1940 e início da década de 50 como a Residência Jadir de Souza (1951) e o Conjunto Sanatorial de Curicica em Jacarépagua (1948-50), na casa de Lota Macedo Soares (1951-53) em Samambaia/Petrópolis há claros sinais de experimentalismos na conjunção inesperada de sistemas construtivos distintos: o industrial e o rústico. Nesta casa de campo, Sergio Bernardes utiliza processos de padronização típicos da construção industrial, evidentes na estrutura de treliças e pilares metálicos, na cobertura de telhas onduladas de alumínio e nos grandes panos de vidro. Porém, o lado arcaico se mostra nos muros de pedra, nas paredes de tijolo à vista e no revestimento dos pisos e nas venezianas da ala dos quartos.

A casa tem pouco daquela atmosfera doméstica e intimista, assumindo um tom urbano e cosmopolita, bem ao estilo de sua proprietária. Isso se reflete no núcleo social concebido como um misto de local de estar e galeria de arte, em franca interação e abertura com a paisagem ao redor. Se o arranjo espacial seguia o partido típico das residências modernistas daqueles anos - uma planta aberta com organização em T, em cujo centro está o núcleo social e serviços e nas extremidades os setores íntimos – há certa mescla de informalidade geométrica e ascetismo puritano que traem certa influência da arquitetura americana daqueles anos, o que de certo modo assinala uma espécie de recusa do jovem arquiteto ao idealismo estético em favor de uma atitude mais direta na abordagem do projeto e da construção.



 

Em princípio, Niemeyer parece ter assimilado esse experimentalismo construtivo de Sérgio Bernardes na Casa Canavellas (1954-55), ao introduzir elementos um tanto estranhos ao seu vocabulário. Refiro-me obviamente à incorporação da treliça metálica e dos apoios de pedra nos 4 cantos do perímetro.  Ponto interessante é a exploração dos materiais: pedra, telha de alumínio, liga metálica, forro de madeira, vidro. Explorar técnicas e materiais de construção não é o procedimento muito usado pelo raciocínio de Niemeyer. A poética dos materiais é incomum à plástica formal.

Mas a novidade era esse sistema conjugado à um plano curvo de cobertura, esse sim um elemento familiar a Niemeyer, contudo, incomum à gramática de Sergio Bernardes naqueles anos. Ali a viga treliçada funciona tensionada, por força da catenária, razão pela qual os pilares de pedra assumirem uma configuração distinta do usual em Niemeyer, mais pesada de um triângulo retângulo, cuja hipotenusa é curva, tendo a base cravada firmemente no chão e o vértice o ponto de articulação com a treliça. A rigidez dos apoios contrasta com a leveza da cobertura.

O tema da cobertura curva aparece timidamente na Residência Jadir de Souza, mas será definitivamente incorporada e explorada no Pavilhão da CSN no Parque Ibirapuera de 1954, no Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Bruxelas (1958) e no Pavilhão de São Cristóvão (1958-60). Já Niemeyer parece não ter dado mais continuidade à esse experimentalismo construtivo e o mesmo se poderia dizer com esse tipo de cobertura e sistema portante (apesar de ter retornado alguns anos depois na igreja Nossa Senhora de Fátima, em Brasília).

Mas esse movimento só nos convence de que o diálogo entre os dois arquitetos era vivo e instigante. Como vimos no caso do Auditório do Edifício Manchete, Niemeyer não era avesso nem muito menos imune à influência de outras arquiteturas. Ao contrário da mitologia que se construiu em torno do “mestre” – genial inventor, absolutamente original – Niemeyer apenas demostra deter cultura arquitetônica e que todo projeto é uma conversa com tantos quantos projetos que se tenha vivido e experimentado, seja de que modo for.

Feitos estes esclarecimentos iniciais, vamos às considerações específicas sobre a residência Canavellas.

 

X

 








O caminho de acesso, em suave inclinação, se faz numa das encostas que forma o vale. Assim, desde o percurso inicial, o projeto indica o eixo espacial dominante da paisagem. Atravessamos de ponta a ponta a extensão da propriedade e por entre as árvores do caminho vislumbramos abaixo o plano marcante da cobertura da construção. Na extremidade oposta à entrada de acesso, fazemos o retorno em cota mais baixa e finalmente divisamos, em sentido inverso, a casa interceptando a profundidade do espaço. O vale agora surge como um ambiente acolhedor, suas altas encostas amparam e protegem. Seguindo em direção à residência, vemos a quadra, a piscina, o jardim geométrico.

A arquitetura se implanta estrategicamente em sentido transversal ao vale. Ela se resume a uma ampla e extensa cobertura curva apoiada em 4 grandes pilares de pedra Cerca de três quartos da casa é reservado ao setor social, vazado e transparente. A intenção é clara: não impedir a continuidade do espaço. Tanto que, ao modo de um Mies Van der Rohe, uma parede de pedra que delimita a área de estar, isolando o setor dos quartos, cozinha e de serviços, continua seu movimento, avançando, solta, em direção ao jardim geométrico. O contraponto é a fileira de palmeiras imperiais inserida entre o gramado e o caminho de entrada.
 


 


 

 Esse muro de pedra atua como um direcionador perceptivo, que antecipa e acelera a vazão espacial, canalizando-a para o outro lado da casa.  Ao atravessá-la, percebemos a mudança de configuração do jardim: o motivo em xadrez cede vez para formas orgânicas, verdadeiras massas curvilíneas se expandindo em tons contrastantes de lilás e amarelo esverdeado, ressoando contra a superfície verde do gramado. Este setor se distingue pela inclinação do terreno, que se move em ondulações, em franca concordância com as linhas do jardim. O segmento seguinte suave e tranqüilo, dominado pelo lago de contornos orgânicos de um lado e em livre desenvolvimento, na outra margem, sem aquela formalidade orgânica e abstrata do setor antecedente.
 


 

A busca de uma interação com a paisagem é o nexo dominante deste projeto de Niemeyer-Burle-Marx. O partido arquitetônico define-se num gesto básico: implantar a casa em sentido transversal ao eixo longitudinal do vale, dividindo-o em dois setores (na verdade em três se considerarmos a parte do lago). A conjunção ambiental se deflagra pela curvatura invertida do plano da cobertura que assim faz ressoar a concavidade do vale.  
 
O partido paisagístico qualifica e potencializa a setorização imposta pela secção do lote que o projeto arquitetônico produz. No lado do acesso à casa se localizam a piscina e a quadra, ou seja, as atividades reservadas ao lazer e ao esporte. Nesse lado, o paisagismo de Burle-Marx introduz um padrão de desenho ortogonal, definindo uma malha xadrez no gramado que cerca a piscina. Além disso, seguindo a guia dos quadrados, introduz arbustos bicromáticos em duas faixas em alinhamento alternado e uma fileira de palmeiras imperiais no limite que separa o gramado do caminho de acesso. Também foram plantadas árvores frutíferas nesse setor.





 No lado posterior, como vimos, é a curva que determina o desenho do jardim. O gramado em retícula estruturava área anterior, agora atua como plano genérico, contra o qual se elevam arbustos que formam ondas curvilíneas de tons intensos e irradiantes. Um conjunto bicolor (lilaz e verde amarelado) mais compacto se concentra no ângulo que define o contorno do piso de base, na base do pilar da parte dos quartos. Outra faixa tem tonalidade única (lilaz) e se desenvolve em curso ondulante em direção ao lago. Entremeando estes dois planos, massas arbustivas completam o jardim. Uma delas em particular se eleva, criando um interessante contraponto vertical à horizontalidade dos arbustos. Ao contrário do que se poderia supor, o caráter pictórico do paisagismo de Burle-Marx acata e explora as sugestões do terreno, bem como opera com massas volumétricas, não se reduzindo a simples transposição do desenho bidimensional no jardim. O prolongamento do terreno é ocupado pelo lago de contornos sinuosos, seguindo até o limite da propriedade. Mas quanto mais avançam mais diluídos seus contornos vão se tornando, tanto que uma de suas margens encontra diretamente a base da encosta preenchida pela floresta.  

Já a casa é concebida a partir do desenho da cobertura em meio à exuberante cadeia de montanhas ao redor. Trata-se de um procedimento típico ao partido de Niemeyer: definir o projeto pelo perfil de cobertura. Apesar da amplitude desse teto curvo, os ambientes internos são cômodos e bem proporcionados. Tal como na Casa das Canoas, os quartos e a cozinha são de dimensões modestas, para não dizer intimistas. A planta é de fato relativamente reduzida porque seu perímetro não coincide com a projeção da cobertura. A sala de estar é estreita em relação ao setor íntimo e de serviços, dando movimento à planta, mas este estreitamento serve para liberar a área de varanda. O fechamento é predominantemente de painéis de vidro no sentido do comprimento, os dois opostos são pesadas paredes de pedra: uma explode a planta rumando para o jardim em movimento horizontal; a outra, que acolhe a lareira, em sentido vertical vasa o telhado. Ao seu redor forma-se uma faixa de piso de pedra portuguesa que funciona como um grande avarandado, expandindo a área de uso da sala. Aqui o exterior participa diretamente da casa.
 





 

Duas questões se colocam diante das decisões de projeto, tanto o arquitetônico, como o paisagístico. Se o plano curvo de cobertura leve e aéreo é uma forma conhecida do repertório de Niemeyer, o mesmo não se pode dizer dos insólitos pilares de pedra de formato triangular com hipotenusa curva. Outro detalhe incomum é a curiosa “treliça” metálica de secção quadrada que apóia a cobertura de telhas de amianto. Qual o sentido dessa estranha combinação de materiais e sistemas de suporte?

            Quanto ao projeto de Burle-Marx, que sentido poderia ser atribuído a essa contraposição entre o geométrico e o orgânico no jardim?

Poderíamos começar dizendo que da parte de Niemeyer poderia ser uma espécie de flerte com a poética brutalista (como vimos acima, Sérgio Bernardes irá levar essa via experimental na radical casa de Lota Macedo Soares). Mas isso parece pouco em se tratando de um arquiteto que faz de sua auto-confiança o vetor de sua experimentação plástica. Da parte de Burle-Marx, poderíamos dizer que se trata de uma resposta ao programa, um fator de diferenciação entre um jardim social e de lazer e um jardim contemplativo. O paisagista foi extremamente econômico na seleção das espécies vegetais (pouco mais de 7 espécies), mas aplicados com um sentido preciso e calculado. Reduzidos a puros elementos plásticos, ou seja, as espécies individuais ou agrupadas se convertem em efetivos elementos construtivos, ou seja, autônomos, não tanto por se reduzirem a condição de formas pictóricas (como se o jardim fosse simplesmente uma tela pintada) apagando sua condição de tipos botânicos, mas sobretudo por se revelarem em seu ser formal. O que significa individualizar seu contorno formal puro.



 Muito embora muitos a vejam como uma tenda suspensa, não me parece a comparação mais apropriada. Afinal, não se trata de uma superfície tênsil (uma membrana tensionada) cujos esforços se dão mais por tração e elasticidade, ou pela relação entre curvatura e protensão, daí o uso de cabos e mantas ou cascas trabalhando em conjunto, mas de um plano apoiado em vigas e pilares, isto é, as telhas de aluminio são colocadas sobre uma malha estrutural fixa (esta sim operando por tração), sem portanto participar do sistema de esforços portantes. E o arquiteto é o primeiro a afirmar que desejava criar um contraste entre o peso dos pilares em contraposição à leveza da cobertura.

 Minha impressão é de que a casa foi concebida como um pórtico, ou mais precisamente, como um portal que viabiliza um rito de passagem. É possível imaginar que desde o portão de acesso acima, seguindo pelo caminho descendente até retornar e vislumbrar a casa entre o vale, o arquiteto e o paisagista estejam já efetuando uma mudança de registro do regime de sensibilidade daquele que para lá ruma, justamente um habitante da metrópole. Gradativamente o “citadino” adentra num ambiente dominado pela paisagem natural. Através desse percurso o arquiteto arma uma reversão e o que no princípio víamos como frente, ao seguir o caminho e retornar se revela fundo. Por isso, logo na entrada da casa, ao contrário do se poderia esperar, localiza a parte do lazer com piscina e quadra. A geometria do jardim confirma que as atividades ali desenvolvidas estão em continuidade com o setor social da residência, portanto, ainda regidas por valores de convivência urbana. O ponto de interpolação é a sala de estar e o limite que anuncia a mudança de registro da sociabilidade urbana para o exercício contemplativo da natureza é justamente o plano opaco, que situado entre dois panos de vidro completa a vedação da sala, no lado que dá para o lago.

Registro similar parece também explicar que o uso híbrido de técnicas e materiais também opera o trânsito entre o artesanal e o industrial, ou mesmo, entre o aéreo da cobertura suspensa e a massa dos 4 pontos de apoios. E nesse sentido sua razão de ser seria poética, antes que meramente construtiva.

Essa passagem entre cultura e natureza e vice-versa, dá a nota do projeto modernos da arquitetura brasileira do período. Niemeyer e Burle-Marx/arquitetura e paisagismo parecem afirmar que à Arte cabe estabelecer essa continuidade tranquila e prazerosa e quando temos em mente que num país que no plano retórico mistifica as belezas naturais, mas cuja história é de exploração violenta da Natureza, esse projeto ganha especial beleza e lirismo.  

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